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10 CONVENÇÃO CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANAS OU DEGRADANTES E CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR E PUNIR A TORTURA

Cristina de Freitas Cirenza*

Clayton Alfredo Nunes**

* Procuradora do Estado de São Paulo, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.

** Procurador do Estado de São Paulo, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.


1. CONVENÇÃO CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANAS E DEGRADANTES(1)

1.1. Aspectos Centrais do Tratado

1.1.1. Introdução

Tido como um dos principais tratados que visam à proteção dos Direitos Humanos, data de 10 de dezembro de 1984, quando foi adotado pela Resolução n. 39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas. No Brasil, foi ratificado apenas em 28 de setembro de 1989.

No dizer de Paulo Sérgio Leite Fernandes e Ana Maria Babette Bajer Fernandes(2) , "não se pode e não se deve, sob o pretexto de maior eficácia na repressão da criminalidade violenta, alargar os limites dos cordões do Poder, tornando menos sólidos os princípios jurídicos norteadores das linhas que previamente obrigam o Estado à autolimitação." A história é sempre válida para permitir a colheita de exemplos.

É neste contexto que deve-se entender este Tratado: a ampla necessidade de proteção ao cumprimento das leis, por um lado, e por outro, o respeito à dignidade humana , que não se coaduna com práticas vexatórias à cidadania e penas que ultrapassem o limite do tolerável e justo dentro de um sistema de leis que tenham sido elaboradas em um estado de direito democrático.

Continuam os autores: "não se pode cortar a ligação estreita que existe entre a liberdade, os direitos humanos, a concepção do justo e a norma posta em vigor. Não se implanta o Direito sem que se atenda à expectativa de que aquele ordenamento corresponda a um conjunto de normas justas. Nesta adequação entre a norma escrita e a perspectiva advinda de cada um e da comodidade de seu todo tem-se leis justas e leis injustas..." "...misturados na liberdade, nela se alimentando, mutáveis embora, os direitos humanos acompanham sempre o homem na sua escalada pela vida."

Alberto Silva Franco perquire, em artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, o que teria levado o legislador pátrio a "invadir, de maneira tão explícita, a área de atuação reservada normalmente ao legislador ordinário" a tutela penal de determinado bem jurídico.

É o caso em tela: a Constituição Federal (art. 5º, inc. XLIII) faz expressa referência à prática de tortura como fato criminoso equiparável aos crimes hediondos, inafiançável, insuscetível de graça ou anistia, muito embora "nenhuma providência tenha sido seriamente adotada até março de 1997, para atender quer ao texto constitucional, quer aos compromissos internacionais." Pondera o jurista: "de um lado, a consideração de que certos bens jurídicos, pela importância que lhes era ínsita, deveriam ficar resguardados, mesmo em nível constitucional, através de uma adequada proteção penal. De outro lado, a consideração de que o Direito Penal seria o único instrumento de controle formal adequado à eficaz garantia dos mencionados bens jurídicos, sendo certo, assim, que a incriminação não representava apenas um juízo de merecimento de pena, mas, sim, e sobretudo, um juízo de necessidade dessa pena. Desse modo, o legislador constitucional chamou para si os critérios aferidores que seriam próprios do legislador infraconstitucional para efeito de incriminar, ou não, determinadas ofensas a bens jurídicos relevantes."(3)

1.1.2. Escorço histórico

Se voltarmos alguns capítulos da história, veremos com clareza como se chegou ao texto constitucional de 1988: em primeiro de abril de 1964 ocorreu um golpe militar que pôs abaixo a ordem constitucional vigente. Pessoas ligadas ao regime deposto foram perseguidas e crescia a concepção de "segurança nacional", quando os arbítrios eram cometidos em nome da pátria. Surgiu a guerrilha urbana e as organizações de esquerda. Com o AI-5 vem a censura absoluta, a suspensão do habeas corpus, o recesso do Congresso e a cassação do mandato de deputados. Surge a tortura como forma de obter-se confissões e revelações de informações tidas como imprescindíveis à segurança nacional. Seus meios, todavia, dilacerando corpos, mutilando mentes e atemorizando a todos oponentes ao sistema, revelavam o contrário. Neste diapasão há um endurecimento das leis, criam-se até restrições ao direito de defesa, surge a pena de morte (Decreto n. 898).

Mas, obviamente que a tortura não foi inventada no Brasil, e tampouco apareceu como prática corrente somente nos idos de 1964. Há quem diga que "a tortura, forma extremada de violência, parece ter se entranhado no homem ao primeiro sinal de inteligência deste. Só o ser humano é capaz de prolongar sofrimento de animal da mesma espécie ou de outra. Os seres inferiores ferem ou matam a caça. Devoram-na depois. O homem é diferente. O impulso de destruição o conduz à aflição de dores por prazer, por vingança ou para atender a objetivos situados mais adiante.(4)

O antiquíssimo direito Chinês já a previa; sob a inquisição era meio adequado a testar a veracidade da confissão, mas se prolongava depois, como forma de integrar a própria pena. O Manual dos Inquisidores serve perfeitamente aos torturadores de hoje.(5) A diferença é que hoje, o corpo humano, legalmente erigido à condição de intocável, deve permanecer imaculado — outrora deveria apresentar sinais visíveis da prática insidiosa. A tecnologia auxilia os detentores do Poder: funciona subliminarmente, com existência sabida e divulgada, mas legalmente proibida. Aparecem então os choques elétricos, o recurso da água, a privação do sono, a tortura acústica. "Tranqüilizam os Juízes. Não os obrigam "ver" prova palpável da confissão extorquida..." Aqui não se pode jogar com estatísticas judiciais ou policiais, pois que a tortura praticada em nome do poder é nebulizada por este, raramente chegando à apreciação do Judiciário. Mais rara ainda é a comprovação do suplício mediante apuração processual. Por último, os dedos da mãos são suficientes para contar as efetivas condenações dos torturadores. Há nisto uma tônica viciada na origem. Em síntese: os autores da tortura são normalmente os encarregados da apuração da realidade do tormento."(6)

Definitivamente, com o golpe de 64, o direito dá a vez à violência. "Da guerrilha ao terrorismo, do encarceramento de dissidentes ao impiedoso aniquilamento de milhares de criaturas com apuração sumaríssima de seus crimes ou sem qualquer verificação, num autêntico massacre, o mundo moderno tem revelado que a violência passou a ser mero fato, despido de significação fundamental, compondo, cada vez mais, o conformismo cotidiano. Ficaram anestesiadas as valorações e suspensos os julgamentos de mérito, superados pela rotina, como se a inocência leviana pudesse anular as consciências"(7).

Desde a Idade Média tem-se notícia da utilização da tortura como forma de obter-se a confissão do acusado: de 1200 a 1800 d.C., nos Tribunais Eclesiásticos da Inquisição, era tida como a ‘rainha das provas’ e meio processual de apuração da verdade.(8) Para os delitos ocultos, mais difíceis de comprovação, utilizava-se a tortura para obter-se a confissão, que era ratificada na presença do escrivão após.(9) Segundo, ainda, Heleno Cláudio Fragoso, a Inquisição fez largo emprego da tortura, escrevendo negra página na história do Direito Penal(10).

Já na Idade Contemporânea, a história viu passar o nazismo de Hitler, que matou e torturou milhões de judeus, ciganos, comunistas, homosexuais, etc. Em 1917 a União Soviética reprimiu a liberdade individual com a prática da tortura, no regime socialista. Outros países, França, Israel, África (alguns) e Brasil, tiveram em seu governo regimes militares e ditatoriais.(11)

No panorama da legislação mundial, aparece a previsão de proteção aos direitos humanos, e especificamente condenando-se as penas ‘cruéis ou aberrantes’, na Declaração dos Direitos do Homem da Virgínia, EUA, em 1776. Onze anos depois, na 1ª Constituição do país, o artigo 7º prevê a proibição de aplicação de penas cruéis. No mesmo período, na França, surge a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que dispõe que "o rigor no tratamento das penas deve ser seriamente reprimido", reproduzindo-se a mesma idéia na Constituição Francesa de 1791. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é sem sombra de dúvida o texto mais importante de banimento da prática da tortura: a partir de 1948 gerou-se uma série de pactos e convenções e reconheceu-se a tortura como delito previsto no direito internacional positivo, impondo-se aos Estados a obrigação de reprimi-la, e também de impingir sanções aos violadores da norma. São exemplos: A Convenção Européia de Direitos Humanos (4.11.1950); O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (12.1966), A Convenção Americana de Direitos Humanos (11.1969 - Pacto San José da Costa Rica); a Convenção da ONU (1984) e a Convenção da OEA (1985).

No Brasil, a Carta Constitucional do Império referia-se ao princípio da legalidade das prisões (arts. 179º, 8º, 9º e 10º) e à abolição dos "açoites, torturas, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis". Muito embora tenha sido aprovada em 10.12.84, a Convenção da ONU só entrou em vigor em 26.07.87, sendo que o Brasil a firmou em 23.09.85, ratificando-a somente em 1989.

Em nossa Constituição de 1988 os dois artigos que surgem, condenando a prática de tortura, são extraídos da Convenção Americana de Direitos Humanos, o chamado "Pacto de São José da Costa Rica". Muito embora esteja no bojo da Carta Constitucional, levou o Brasil quase cinqüenta anos para tipificar a conduta criminosa da prática da tortura, desde que tornou-se signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1949. Somente após episódios como os de Diadema e da Favela Naval, onde civis foram torturados e mortos, chegou-se à edição da Lei n. 9.455, de 07.04.1997, sobre a qual teceremos alguns comentários mais adiante.

 

1.1.3. Principais pontos do Tratado

A Convenção está dividida em três partes: a primeira diz respeito aos sujeitos ativos e passivos da tortura, sua definição e as medidas a serem tomadas pelos Estados que a ela aderirem, basicamente; a segunda trata do "Comitê", terminologia adotada para definir a formação de um Comitê contra a Tortura e seu modus operandi: membros, duração do mandato, relatórios, posicionamentos sobre casos apresentados dentre outros; a parte III cuida da adesão dos Estados-partes à Convenção, bem como emendas que possam vir a sugerir. Neste trabalho procuraremos abordar, principalmente, a 1ª parte da Convenção, que é em verdade, seu" coração", em nosso modesto entender.

O artigo 1º da Convenção consolida o entendimento a nível internacional de que a tortura ocorrida no Estado, através de seus funcionários civis, policiais ou militares, por ser uma prática comum e sinistra e por suas conseqüências graves, cruéis e funestas, deve ser reprimida por leis nacionais, com maior rigor e de forma mais efetiva.

O artigo 2º conclama os Estados a adotar todas as medidas necessárias a fim de impedir a prática de atos de tortura em seus respectivos territórios e consagra a regra de que, em nenhum caso, poderão ser invocadas ‘circunstâncias excepcionais’ como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência, como justificação para tortura. Do mesmo modo, dispõe o texto convencional que não será admitida a exclusão da culpabilidade sob a alegação de obediência à ordem de autoridade pública superior."(12) No entender de José João Leal, ainda, o texto da Convenção procura atingir os dois tipos de tortura mais comuns: a policialesca e a inquisitorial. A primeira é caracterizada por práticas diversas (choques elétricos, afogamentos, paus-de-arara, celas escuras e fétidas, etc.) usadas como forma de 1) investigação policial 2) castigo pelo crime cometido. Não raro conta com a conivência de magistrados, membros do Ministério Público e autoridades policiais. Predomina que este é o único meio a se obter a prova material e da autoria do crime.

A segunda forma de tortura é a institucional, que é a praticada por motivo político-ideológico, também usada como instrumento da investigação a serviço do aparelho estatal totalitário. "Historicamente, suas vítimas têm sido sistematicamente os líderes sindicais, políticos e estudantis, os intelectuais e os religiosos mais progressistas e autênticos que, num certo momento, possuem a coragem de resistir e lutar contra uma ordem política opressora e injusta."

O artigo 3º cuida de dar proteção ao ser humano que, se extraditado ou expulso de uma nação, sabidamente possa ser submetido à tortura.

No artigo 4º já se preceituava a necessidade do legislador definir em lei o crime de tortura a fim de que sua prática fosse coibida (crime em sua forma consumada, tentada e em co-autoria)

O artigo 5º define a competência territorial do Estado em relação às medidas que tenha que tomar caso constate a prática de tortura, além de dentro de seu território, à bordo de navio, aeronave registrada no Estado e quando o autor ou vítima for nacional do Estado (princípios da universalidade e da nacionalidade).

O artigo subsequente preceitua que o Estado deve proceder à detenção do autor e adotar as medidas legais que estejam de acordo com sua lei, a fim de garantir a repressão e punição à prática de tortura.

De toda forma, procurou-se garantir ao suposto autor tratamento justo em todas as fases do processo (art. 7º).

Considera-se que o Estado que aderir à Convenção adotará o princípio de que todo aquele que praticar tortura estará sujeito à extradição, mesmo que não haja Tratado entre as nações envolvidas: a própria Convenção servirá de base legal.

O artigo 9º fala da reciprocidade que deve existir entre os Estados no fornecimento de informações em relação aos procedimentos criminais instaurados, bem como o fornecimento de todos os elementos de prova necessários para a apuração dos fatos.

O artigo 10 procura ir mais além: ressalta a importância de se incorporar o ensino e informação sobre a proibição da tortura no treinamento de pessoal civil, militar, funcionários de qualquer espécie que possam participar da custódia, interrogatório ou tratamento de pessoa submetida à prisão. O artigo subsequente complementa este dispositivo, no que tange ao exame de métodos e práticas de interrogatórios e tratamentos.

Ressalta-se no artigo 12 a importância da imparcialidade das autoridades competentes na apuração dos fatos investigados em qualquer território sob a jurisdição do Estado. Neste diapasão, também, o artigo 13, já que quer assegurar que qualquer pessoa que tenha sido vítima de tortura possa apresentar queixa a autoridades competentes, que procederão com a mesma imparcialidade apontada.

A temática da indenização da vítima de tortura surge no artigo 14: reabilitação, indenização justa à vítima e/ou seus familiares dependentes.

De se desprezar eventual prova obtida por meio de tortura: é o que consagra o artigo 15.

A fim de garantir que ninguém seja submetido a ato cruel, desumano ou degradante, o derradeiro artigo desta parte da Convenção estatui que em não se tipificando o ato como tortura, tal qual definido no artigo 1º, mesmo assim seja coibido, e assevera, ainda, que os dispositivos da Convenção devam ser interpretados de maneira ampla: nunca a restringir a aplicação "de qualquer outro instrumento internacional ou lei nacional que proíba os tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes ou que se refira à extradição ou expulsão".

 

1.2. Mecanismos de Implementação

1.2.1. Conceito de Tortura

A lei não definiu o vocábulo ‘tortura’, apenas disse o que constitui o crime de tortura. Pune-se a tortura para proteger-se a dignidade humana, que é o objeto jurídico a merecer a tutela penal.

No dizer de Paulo Sérgio Leite Fernandes e Ana Maria Babette Fernandes(13), "tortura e violência andam sempre juntas.... não há tortura sem violência. Quando se pensa em tortura, vem imediatamente à luz a característica da força física. Há tortura sempre que, com a finalidade de reduzir ou anular a liberdade de vontade do indivíduo para a obtenção de informações retidas, a autoridadade ou seus agentes utilizam força física que provoque dor ou aviltamento da dignidade do interrogado, ou ainda, procedimentos outros adequados à superação da efetiva ou esperada resistência do indivíduo, nisto compreendida a intimidação por ameaças de mal grave ao próprio indivíduo ou a terceiros que com este mantêm relações familiares ou de afeto. Há tortura, igualmente, sempre que por meio de simples persuasão sugestiva de efeito racional, se obtiver, com técnicas psicológicas, a cooperação do sujeito passivo, evidenciando as circunstâncias à prática disfarçada de conduta demonstradora de anterior ou concomitante cerceamento abusivo da liberdade de locomoção, seja em razão do descumprimento de formalidades exigidas por lei, seja pelo regime prisional imposto em desconformidade com os regulamentos do estabelecimento carcerário". Continua o autor: "Esta longa definição pretende abranger todas as possibilidades de concretização da tortura, captando inclusive aquelas ações que se nutrem nas modernas técnicas de interrogatório. Há razão para a última parte do texto. Os métodos aparentemente legítimos usados por policiais do mundo inteiro, consistentes em amáveis inquirições que se sucedem durante horas e horas mediante troca de equipes de interrogadores, acabam vencendo pelo cansaço ou qualquer outra causa a relutância dos interrogados. À margem disto, o paciente não pode dormir ou, se lhe permitem o repouso, tiram-no deste abruptamente em períodos irregulares, trazendo-lhe total confusão sobre o ultrapassamento do tempo. Isso é perfeita tortura."

Inúmeros juristas conceituam tortura de maneira diversa, todos eles buscando dar a maior abrangência à prática repugnante. A Convenção de 1984 utilizou-se, no artigo 1º, dos verbos infligir, obter, castigar, intimidar e coagir. Todos eles apontando para o abuso, para o autoritarismo e para a ilegalidade. Não se pretende, aqui, fazer incursão neste terreno, que por si só demandaria um trabalho em separado. O que faremos, todavia, é tecer breves comentários, à luz da doutrina e jurisprudência mais recente, sobre a Lei n. 9.455/97, que veio de encontro à tão esperada regulamentação do artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal. Isto a despeito de o Brasil ter ratificado, respectivamente, em 28.09.1989 e em 20.07.1989 a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, assumindo o compromisso internacional de considerar como crime, todos os atos de tortura e as tentativas de praticar atos dessa natureza, porém sem nenhuma incursão no campo prático, seja para atender os compromissos internacionais ou ao disposto na Carta Magna.

1.2.2. A tortura no Direito Penal Brasileiro — Implementação

Sem sombra de dúvida, a Lei n. 9.455/97 é o principal instrumento de combate à tortura a nível nacional. Na sua ausência, o magistrado, nas raríssimas hipóteses em que comprovada a tortura, tinha de se utilizar de legislação que mais se aproximasse do delito de tortura, até então inexistente e portanto menos eficaz, porque menor a pena e menores as sanções. Quando se apresentava era sempre como fim ou meio de execução de outros crimes, homicídio, lesão corporal, abuso de autoridade, etc. O disposto no artigo 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, impede que o sentenciado seja suscetível de graça, anistia, indulto, fiança e liberdade provisória para o crime de tortura, à época, portanto, inaplicável. Alguns institutos autônomos (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 233), já definiam punições mais severas caso comprovada a tortura, mas à título de exceção. Com a edição da lei alcançamos, no Brasil, novo patamar jurídico, em que pese sabermos que de nada adiantará a lei frente a Magistrados e membros do Ministério Público silentes.

Assim é que propiciou-se ao Estado Brasileiro mecanismos de implementação do preceituado na Convenção, podendo-se agora atender ao disposto em seu bojo.

Alberto Silva Franco faz crítica, todavia, a alguns aspectos da lei, sendo a mais grave o fato de no novo diploma legal o tipo da tortura não tenha sido estruturado "como crime próprio — aquele que requer, no sujeito ativo, uma determinada qualidade — mas sim, como crime comum, isto é, aquele que pode ser executado por qualquer pessoa."(14) Neste aspecto a lei não se coaduna com a Convenção, que exige seja o sujeito ativo do tipo penal funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas. Obviamente que há os que pensam, prossegue o autor, que não se trata de crime próprio. Para Alejandro del Toro Marzal(15) "a tortura deve ser castigada em si mesma e por si mesma, em razão de seus detestáveis métodos e por seus fins contrários à liberdade e à dignidade". Em verdade, esta conclusão está equivocada: "o que dá substantivação ao delito é o abuso de poder vinculado ao atentado contra as garantias, penal e processual. Os fatos realizados por particulares não podem reunir esses dados característicos e, em qualquer caso, para seu castigo há uma larga série de figuras genéricas."(16)

Apesar de muitas as críticas que faz o autor à redação da lei, tal qual a omissão de definição aos limites conceituais do "sofrimento físico" ou do "sofrimento mental", por exemplo, fica um saldo credor: finalmente há meios de se coibir e punir a prática da tortura. Havia, ainda, uma necessidade de descrever o comportamento condenável sob o nome jurídico de ‘tortura’ para se atender ao princípio da reserva legal.

Em sua obra "Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional", Flávia Piovesan ressalta que "diante deste universo de instrumentos internacionais, cabe ao indivíduo, que sofreu violação de direito, a escolha do aparato mais favorável, tendo em vista que, eventualmente, direitos idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance global ou regional, ou ainda, de alcance geral ou especial. Vale dizer, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. A título de exemplo, o direito a não ser submetido à tortura é, concomitantemente, enunciado pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, (art. 7º), pela Convenção Americana (art. 5º), pela Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes ou ainda pela Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Cabe, assim, ao indivíduo a escolha do instrumental mais favorável à proteção de seu direito, já que no domínio de proteção dos direitos humanos, a primazia é da norma mais favorável à vítima".(17)

A autora pontua, de forma intrigante, que até 1985, 90% dos casos de comunicações de violações de direitos humanos à Comissão Interamericana foram encaminhados por indivíduos ou grupos de indivíduos, sendo que a partir daí, sempre por entidades não governamentais. De suma importância, ainda, a democratização para a gradativa formação de um papel crítico: hoje em dia até governadores de Estado saem em defesa dos direitos humanos. Inobstante isto, não podemos nos olvidar que o Estado não consegue controlar a polícia militar, ranço de um padrão de violência praticado no regime militar.

Em sua obra, a autora faz belíssima análise de casos encaminhados e as soluções propostas, muitas das quais decisivas para o panorama nacional atual.

 

1.3. IMPACTO NO DIREITO BRASILEIRO

A Convenção mostrou, principalmente:

1. Um parâmetro de ação para os Estados, baseado nos standards internacionais

2. Uma estratégia de atuação para as organizações não governamentais, pois ao aderir ao discurso dos direitos humanos os estados são convocados a responder com maior seriedade contra a violação de tais direitos

3. Publicidade: há um constrangimento político e moral ao Estado violador. Este é "compelido" a apresentar justificativas, incentivando-se, assim, reformas internas.(18)

Assim foi que o governo estadual foi chamado à ONU para explicitar quais as medidas adotadas pelo estado após o "Massacre da Casa de Detenção de São Paulo", onde ao menos (oficialmente) 111 presos foram mortos pela Polícia Militar; o governo de São Paulo, ainda, de pronto declarou-se culpado no Caso da Favela Naval, onde um civil foi morto e demais torturados, de imediato determinando que fossem indenizadas as vítimas, a despeito das medidas criminais a que os réus estão sujeitos; o Poder Legislativo editou lei que submete os militares a julgamento por juízes comuns, a não ser em crime militar próprio, e tantas outras ações que decorrem deste novo panorama nacional.

 

1.4. Doutrina e Jurisprudência

"Violência Policial no Brasil"- Execuções Sumárias e Tortura em São Paulo e Rio de Janeiro - Relatório da Americas Watch 1987: este relatório diz respeito a questões centrais de Direitos Humanos no Brasil: execuções sumárias e tortura de suspeitos pela polícia local. Está centrado em São Paulo e Rio de Janeiro, porém há material comparativo de outras cidades. A palavra "tortura" é usada neste relatório significando o uso de violência física severa para extrair-se informação. Os abusos cometidos contra brasileiros persistem por razões detalhadas no relatório, inclusive a aquiescência ou o encorajamento ativo da violência policial por cidadãos, assim como por funcionários. Ao mesmo tempo, organizações privadas de direitos humanos e até funcionários do Estado tem trabalhado para reduzir as torturas e assassinatos institucionalizados. Há, portanto, uma contínua luta entre aqueles que acreditam somente na violência policial e aqueles que apoiam o desenvolvimento da consciência do Direitos entre os cidadãos. A Americas Watch quer incitar os funcionários públicos de todos os níveis no Brasil a fazerem todo o esforço para apoiar e encorajar o crescimento dos Direitos Humanos, inclusive a ratificação do acordo das Nações Unidas e demais medidas especificadas no relatório.

O Habeas Corpus n. 70.389-5 procurou, à época da inexistência de lei penal tipificadora da tortura, buscar saída para puni-la, inobstante a inexistência de lei ordinária. Acordou-se, pois, que a tipificação contida no artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente era suficiente para tipificar o crime. Hoje, a questão está superada. Isso não quer dizer, porém, que outras oportunidades não tenham surgido para que o Judiciário se debruçasse sobre o tema da tortura. Do contrário, as ementas que se seguem exemplificam que a questão está presente na realidade judiciária brasileira, valendo a pena conferir os procedimentos dos tribunais.

 

HOMICÍDIO - Qualificado - Tentativa - Impronúncia - Inadmissibilidade - Indícios de autoria firmes e coerentes - Agressão à vítima em sessão de tortura para confessar um furto - Negativa por parte da vítima ensejadora do animus necandi - Recurso não provido. (Relator: Denser de Sá - Recurso em Sentido Estrito n. 150.234-3 - Itapecerica da Serra - 2.2.95).

LATROCÍNIO - Caracterização - Materialidade de autoria comprovadas - Confissão, ademais, por um dos réus - Ininvocabilidade da submissão à tortura - Recurso não provido. (Relator: Fortes Barbosa - Apelação Criminal n. 159.605-3 - Cotia - 1º.8.94).

PROVA - Ilícita - Não caracterização - Peça reproduzida de outro processo - Artigo 5º, LVI da Constituição da República - Vício inexistente - Hipótese em que a xerocópia foi obtida em outro processo, que pela regra, é de acesso público - Validade constatada - Recurso não provido Prova Ilícita será aquela obtida de modo Iníquo ou condenável, por exemplo, e respectivamente, mediante tortura, narcoanálise ou sub-repticiamente. (Relator: Marrey Neto - Apelação Cível n. 236.701-2 - São Paulo - 31.5.94).

REGIME PRISIONAL - Progressão - Inadmissibilidade - Crime hediondo - Vedação pela Lei n. 8.072/90 - Presunção legal de que o sentenciado não tem mérito para a progressão - Restabelecimento do regime fechado - Recurso provido. Por força do artigo 2º, § 1º da Lei n. 8.072 de 25.7.90, os autores dos crimes hediondos, da prática de tortura, do tráfico Ilícito de entorpecentes e drogas afins e de terrorismo devem cumprir a pena Integralmente em regime fechado. Não têm direito, pois, à progressão mesmo que, antes da vigência da lei, já estivessem em regime semi-aberto. Permanecerão neste regime até que, eventualmente, possam obter o livramento condicional (Agravo n. 185.205-3 - Itapecerica da Serra - Relator: Sebastião Junqueira - 2ª Câmara Criminal - V.U. - 21.8.95).

PENA - Fixação - Latrocínio - Agravantes do artigo 61, II, "c" e "d" - Pena base fixada considerando a crueldade dos meios de execução, prevalecendo sobre as atenuantes de primariedade e de bons antecedentes - Recurso improvido. A base, da hipótese, não deve ser fixada no mínimo previsto no tipo criminal. Na execução do crime ficou patenteado a tortura, a qual é agravante de natureza constitucional e não é exclusiva dos crimes políticos. É Inadmissível a alegação de que os réus são primários, pois as atenuantes não devem prevalecer sobre as agravantes de crueldade, tortura, uma vez que ficou constatado a periculosidade dos agentes. (Relator: Fortes Barbosa - Apelação Criminal 99.060-3 - Sumaré - 4.3.91).

PENA - Agravamento - Tortura - Admissibilidade - Lesões corporais cometidas com requintes de crueldade e Insensibilidade - Recurso parcialmente provido. (Relator: Cunha Bueno - Apelação Criminal n. 136.448-3 - Sorocaba - 4.3.93).

CRIME DE TORTURA - Desclassificação para homicídio qualificado - Admissibilidade - Menor - resultado morte - Ocorrência - Dolo próprio não caracterizado - Réu, pai da vítima, assumiu o risco de matá-la - Animus necandi - Caracterização - Inaplicabilidade dos artigos 136, § 2º do Código Penal e 233, § 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente - Recurso provido para anulação da sentença e, por homicídio qualificado venha o réu a ser processado e oportunamente julgado. No caso, castigando como castigou o filho, se não quis matá-lo, assumiu o risco de fazê-lo. Criança alguma, nas condições de fragilidade física do ofendido, resistiria aos abusos que sofreu. Presente, pois, o dolo, que, se não Identificado com o do crime de tortura, também não se ajusta ao do delito de maus tratos. Afigura-se-lhe, ao revés, que procedeu o acusado com animus necandi, assumindo, nas circunstâncias, o risco de matar o filho. (Relator: Dirceu de Melo - Apelação Criminal n. 123.538-3 - São Paulo - 23.9.93).

TORTURA - Menor - Desclassificação para maus tratos - Admissibilidade - Prática de atos graves contra criança - Impossibilidade de se definir como tortura os atos constantes da denúncia - Fundamentação de decreto condenatório além do denunciado - Recurso Parcialmente provido. Tortura é a composição de ações empregadas por uma ou mais pessoas, com relação a outra, ou outras, que pelo modo violento e desgastante, quer no aspecto físico, quer no psíquico, com o perdurar do tempo, acaba por derrotar toda a resistência natural inerente ao ser humano, tornando-o desorientado, depressivo e sujeito às mais várias reações, dentre elas, aquela que mais interessa a quem tortura - o irremediável medo. (Apelação Criminal n. 192.122-3 - Taubaté - 2ª Câmara Criminal - Relator: Prado de Toledo - 16.10.95 - V.U.).

PRONÚNCIA Recurso: RC 107751 3 Origem: CCRIM 3 Relator: Gentil Leite Data: 17.3.92 - Pronuncia - Requisitos - Preenchimento - Delegado que concordou com o recolhimento realizado por Policiais de 50 Presos na cela forte do Presídio, a qual, destituída de Sistema de ventilação de ar, ocasionara a morte de 18 deles mediante asfixia por rarefação - Ocorrência Recurso Improvido. O Delegado de Polícia responsável pelo Distrito Policial tinha o dever legal de suspender a tortura, libertando os presos. Ao concordar com o recolhimento e ter permitido que eles continuassem, temporariamente, ali confinados, aderiu conscientemente a intenção e aos objetivos dos policiais indiciados, assumindo com sua ação o risco de produzir os resultados, com a morte de 18 vítimas e o padecimento de 32. Em vista disso não pode ser atendido quando procura a Impronúncia.

LESÃO CORPORAL Recurso: ACR 130912 3 Origem: SP Órgão: CCRIM 2 Relator: Bento Mascarenhas Data: 26.10.92 Decisão: Lei: ECA 133 - Lesão Corporal - Tortura a Infante Submetido a Autoridade ou Vigilância do Infrator - Absorção pela figura do artigo 233 do ECA autoria e materialidade incontestes - Sentença confirmada - RNP.

INDENIZAÇÃO - Responsabilidade Civil do Estado Recurso: AC 175082 1 Origem: SP Órgão: CCIV 1 Relator: Luís de Macedo Data: 22.9.92 Decisão: - Indenização - Detenção Arbitrária e Submissão da Vítima a Tortura por Policiais Civis - Decorrente incapacidade permanente para o trabalho caracterização de Lesão Corporal Gravíssima - Procedência - Hipótese de Responsabilidade de objetiva da Fazenda - RNP.

HOMICÍDIO - Qualificado Recurso: ACR 123538 3 Origem: SP Órgão: CCRIM 5 Relator: Dirceu de Mello Data: 23.9.92 Decisão: - Crime de Tortura - Desclassificação para Homicídio Qualificado - ADM Menor - Resultado Morte - Ocorrência - Dolo próprio não caracterizou Réu - Pai da Vítima assumiu o risco de matá-la - Animus Necandi caracterização - Inaplicabilidade dos artigos 136, § 2º do Código Penal e 233, § 3º do Estatuto e do Adolescente - Recurso Provido para Anulação da Sentença e, por Homicídio Qualificado venha a ser processado e oportunamente Julgado.

ESTUPRO Recurso: ACR 116097 3 Origem: Jaboticabal Órgão: CCRIM a Relator: Ary Belfort Data: 1º.2.93 Decisão: - ESTUPRO - Não caracterização - Tortura Aplicada a Vítima por seu Ex-namorado - Resultado objetiva por este que, contudo, era diferente da conjunção carnal - Hipótese em que a solução sexual foi o meio encontrado pela Vítima de fazer cessar o constrangimento - RNP.

PENA - Agravamento Recurso: ACR 136448 3 Origem: Sorocaba Órgão: CCRIM 5 Relator: Cunha Bueno Data: 4.3.93 Decisão: - Pena - Agravamento - Tortura - ADM - Lesões Corporais cometidas com requintes de crueldade e insensibilidade - RRP.

PENA - Agravamento Recurso: ACR 145497 3 Origem: Adamantina Órgão: CCRIM 2 Relator: Canguçu de Almeida Data: 13.9.93 Decisão: - Pena - Agravamento - Maus Tratos - Filho menor de 3 anos - Advento do resultado morte - Impossibilidade de classificação como crime de tortura (art. 233, § 3º do ECA) - Sentimento de reprimenda - Maus antecedentes, contudo, e histórico de infrações violentas contra os filhos - Majoração imposta pela continuidade delitiva - RPP.

HOMICÍDIO - Emprego de meio cruel - Inocorrência - Configuração deste que requer tortura física - Recurso parcialmente provido. (Recurso em Sentido Estrito n. 197.355-3 - Presidente Prudente - 5ª Câmara Criminal - Relator: Gomes de Amorim - 14.3.96 - V.U.).

PRISÃO ILEGAL - Tortura Responsabilidade civil do Estado - Indenização devida pela Fazenda Pública - Ação Procedente (TJRJ) RT 570/188.

ESTRANGEIRO - Extradição - Homicídio e tortura imputados ao extraditando - Alegação de não garantia da reciprocidade oferecida por estar o governo requerente sujeito a forte pressão popular - Irrelevância - Risco político que escapa à competência das Cortes de Justiça - Delitos cometidos no exercício de função pública - Conduta punível pelo Direito Penal comum - Crime político não caracterizado pedido visando à prisão preventiva do acusado, e não a interrogatório - Excludentes afastadas - Modificação, no entanto, do regime de competência dos órgãos Jurisdicionais tendo em vista única e exclusivamente a pessoa do extraditando - Submissão a tribunal ou Juízo de exceção inadmissível - Pedido indeferido por essa razão - Inteligência dos artigos 153, 19 da CF e 7º, VII, da Lei n. 6.815/80 e aplicação dos artigos 7º, VIII e 82, § 1º da mesma lei - Declarações de votos (STF) 622/348.

LEIS FEDERAIS - Crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo - Insuscetibilidade de indulto e liberdade provisória, pela presumida periculosidade dos agentes, prevista no artigo 2º, I e II, "In fine" - Vedação insubsistente, por contratar os incs. XLIII, LXVI, LIV, LV e LVII do artigo 5º da CF (respectivamente: proibição apenas de graça e anistia; princípio do devido processo legal; princípio do contraditório e da ampla defesa; princípio da presunção de inocência) - Declaração de votos (TJRJ) RT 671/323.

HOMICÍDIO QUALIFICADO - Desclassificação de tortura - Agente que impõe castigos físicos a menor de 7 anos de idade acarretando-lhe a morte - Proposta de desclassificação para maus-tratos seguida de morte inadmissível - Pai da vítima que assumiu, com seu comportamento o risco de matá-la - Presença do animus necandi - Recurso provido para anulação da sentença e processamento do acusado por prática contra vida - Voto vencido (TJSP) RT 700/317.

MAUS- TRATOS - Desclassificação de tortura - (Art. 233, § 3º da Lei n. 8.069/90) - Admissibilidade - Castigos físicos atrozes aplicados em filho menor com intuito de aprendizado e não por puro sadismo imotivado - Inteligência do artigo 136 do CP (TJSP) RT 699/308.

TORTURA - Desclassificação para homicídio qualificado - Agente que impõe castigos físicos a menor de 3 anos de idade acarretando-lhe a morte - Proposta de desclassificação para maus-tratos seguida de morte inadmissível - Pai da vítima que assumiu, com seu comportamento o risco de matá-la - Presença do animus necandi - Recurso provido para anulação da sentença e processamento do acusado por prática contra vida - Voto vencido (TJSP) RT 700/317.

ABUSO DE AUTORIDADE - Prisão preventiva - Constrangimento ilegal inexistente - Tortura praticada por policiais - Crimes que causou clamor público - Medida necessária à garantia de ordem pública (TJES) RT 711/354.

CONSTRANGIMENTO ILEGAL - Prisão preventiva - Constrangimento ilegal inexistente - Tortura praticada por policiais - Crime que causou clamor público - Medida necessária à garantia de ordem pública (TJES) RT 711/354.

PRISÃO PREVENTIVA - Prisão preventiva - Constrangimento ilegal inexistente - Tortura praticada por policiais - Crime que causou clamor público - Medida necessária à garantia de ordem pública (TJES) RT 711/354.

LESÃO CORPORAL - Tortura - Menor - Absorção do artigo 129 do Código Penal pela figura do artigo 233 do ECA - Autoria e materialidade incontestes - Sentença confirmada - Recurso não provido JTJ 138/439.

PROVA - Confissão do réu - Obtenção por tortura - Apuração da responsabilidade (TAPR) RT 727/582.

INDENIZAÇÃO - Responsabilidade civil objetiva do Estado - Dano moral - Tortura praticada por policiais - Restando caracterizado que os autores foram detidos sem reação foram submetidos a tortura policial, é devida a indenização por dano moral - Sentença de improcedência reformada - Recurso provido para a procedência da ação. (Apelação Cível n. 258.150-1 - São Paulo - 8ª Câmara de Direito Público - Relator: Felipe Ferreira - 13.11.96 - V.U.).

MENOR - Tortura - Infligência de tormentos físicos e psicológicos - Punição desprovida de cunho educativo - Crime caracterizado (TJMT) RT 739/653.

HC 105.484-3 - 6ª Câmara - J. 10.04.91 - Relator: Des. Márcio Bártoll - Admite a possibilidade de liberdade provisória a crime hediondo se não houver nos autos a hipóteses da necessidade de decretação da prisão preventiva.

 

1.5. CONCLUSÃO

Como visto, a tortura tem acompanhado a história humana há muito tempo, surgindo apenas recentemente a consciência universal de sua natureza vil, covarde e atentatória dos direitos fundamentais e, portanto, ao interesse comum da sociedade. Em decorrência, os sistemas internacionais de direitos humanos contêm regras específicas destinadas a combater práticas daquela natureza, visando ainda criar métodos de prevenção à sua ocorrência. Em tal contexto, a Convenção contra a Tortura tem desempenhado relevantíssimo papel, demonstrando o repúdio da comunidade internacional e impulsionando países a tornarem realidade suas previsões, como bem demonstra o caso brasileiro.

Não há dúvida de que a realidade ainda é perversa e cruel, mas não se pode olvidar as mudanças ocorridas nos últimos anos, o que indica um futuro mais próximo ao respeito à integridade física e psíquica de todo ser humano.

 

2. CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR

E PUNIR A TORTURA(19)

2.1. Introdução e Aspectos Centrais

O Brasil se rege em suas relações internacionais pelo princípio, entre outros, da prevalência dos direitos humanos.

Ratificada pelo Brasil em 20.07.89, a Convenção Interamericana surgiu pela necessidade dos países americanos buscarem a eliminação, em seu direito interno, de qualquer tratamento cruel, desumano ou degradante, incluindo-se nesse rol a prática da tortura.

Muito embora tenha sido adotada e aberta à assinatura em 9.12.85, foi ratificada após o trancurso de 3 anos e 6 meses, seguindo à promulgação da Constituição Federal de 1988, que em seus artigos 1o, III; 4o, II; 5o, §§ 1o e 2o, demonstra a sua inserção na nova tendência de Constituições Latino-Americanas de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados.

Prevê, a Convenção Interamericana, em seu artigo 6o e seguintes, a adoção de medidas efetivas de direito interno.

"Os Estados-partes assegurar-se-ão de que todos os atos de tortura e as tentativas de praticar atos dessa natureza sejam considerados delitos em seu Direito Penal, estabelecendo penas severas para sua punição, que levem em conta sua gravidade".

Nesse passo, adotada em Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, a Convenção Interamericana segue a linha da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, adotada por Assembléia Geral das Nações Unidas em 10.12.84.

Na mesma forma do pacto adotado pelas Nações Unidas, a Convenção Interamericana (OEA), em seu artigo 2º, define o delito de tortura e seu sujeito passivo, sendo que em seu artigo 3o, de forma clara, indica o responsável pelos atos alí tipificados.

Além de obrigar os Estados-partes a definirem os tipos de tortura e estabelecerem penas severas no âmbito interno, a Convenção Interamericana obriga seus signatários a tomarem medidas para prevenir e punir outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, prevendo a extradição como benefício integrante de acordo superveniente celebrado entre os Estados-partes.

 

2.2. IMPLEMENTAÇÃO E APLICAÇÃO NO DIREITO INTERNO

A Constituição Federal de 1988, compromissada com o intento do direito adotado na esfera internacional, em seu artigo 5o, XLIII, de forma genérica, introduziu a prática da tortura como crime.

A Lei n. 9.455/97 elencou os atos sujeitos a responsabilização penal e respectivas reprimendas.

Verifica-se nos cenários estadual e nacional que os envolvidos na custódia de presos (provisória ou definitiva), conforme prescrito no artigo 7o e seguintes, começam a receber treinamentos, visto que a matéria Direitos Humanos passa a fazer parte do curriculum das Escolas de Polícia (Civil e Militar); das Faculdades de Direito e dos Concursos para Carreiras Jurídicas.

O tratado prescreve também a forma de relacionamento dos Estados-partes com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos, bem como forma de ratificação e denúncia.

De fato, é de se reconhecer que, apesar do avanço na matéria atinente a prevenção e punição à tortura, o que já foi explicitado nos comentários a respeito da Convenção adotada pelas Nações Unidas, interessa-nos discorrer sobre a parte 2ª, do artigo 7º, do presente tratado, que assim preceitua:

"Os Estados-partes tomarão também medidas semelhantes para evitar outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes".

A Constituição Federal, em seu artigo 5o, ensina que:

III - "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante";

XLVII - "Não haverá penas: e) cruéis";

Ocorre que, tendo em conta o atual sistema penal, "um descompasso permanente e fluido se manifesta entre a ficção e a realidade, entre o mundo concreto e as proposições abstratas, esculpindo um cenário quase inacreditável, onde a repetição monótona de ideologias e doutrinas formam um complicado tecido categorial, a exemplo do coro trágico, mas indiferente ao desenrolar da tragédia.

Torna-se urgente a necessidade de revisão da qualidade e quantidade das sanções, não apenas quanto aos momentos da cominação e da aplicação, em torno dos quais se levantou uma pirâmide monumental de teorias, mas também em referência à execução e seus incidentes que se acomodam nos códigos e arquivos mal cuidados dos cartórios. (...)

Nos dias presentes se questiona com bastante insistência sobre um importantíssimo ângulo do problema da pena-emenda. Tem o Estado o direito de oprimir a liberdade ética do preso, impondo-lhe autoritariamente uma concepção de vida e um estilo de comportamento através de um programa de reeducação que não seja condizente com a sua formação e convicções? A tentativa de retificar a personalidade não seria uma das formas de lavagem cerebral, a exemplo de experiências malsucedidas principalmente nas situações em que a criminalidade é meramente formal? As infrações do estatuto que dispõe sobre a segurança nacional em muitas oportunidades demonstram que inexiste uma ofensa capaz de justificar qualquer forma de punição. Não tem, portanto, a pessoa humana a liberdade de lutar contra determinadas injunções de estrutura política, econômica, cultural, enfim, a liberdade para dissentir mesmo pagando o preço da pena? Muito apropriadamente Antonio Beristain lembra que o Poder Público pretende, às vezes, sob a capa da reeducação invadir esferas totalmente alheias à sua competência e usar as pessoas como meros objetos.

Uma das demonstrações evidentes de que o encarceramento, na forma como está sendo posto em prática, não tem condições de melhorar a situação pessoal do condenado, se deduz do próprio espírito que orientou a Reforma penal e penitenciária decorrente da Lei n. 6.416/77 de 24.05.1977. A exposição de motivos da Mensagem que introduziu o Projeto n. 2/77 revelou a preocupação de resolver o problema da superlotação das prisões. Muito embora ressalvasse que com tal linha de pensamento não se pretendia deixar os delinquentes impunes, a verdade é que o legislador nacional atendeu a proposta de esvaziar as cadeias antes que a revolta dos esquecidos e a persuasão de seus guias levassem a cabo a declaração de guerra civil, clamando pelo extermínio da prisão como espécie de pena.

A sobrecarga das populações carcerárias, como antagonismo diuturno aos ideais de classificação dos presidiários e individualização executiva da sanção, é uma denúncia frequente na doutrina, nas comissões de inquérito parlamentar e nos relatórios oficiais.

A sistemática violação da intimidade da pessoa presa com as naturais consequências ofensivas ao patrimônio físico, moral e espiritual, compõe um trecho significativo desta odisséia e faz lembrar que antes, como agora, quase nada mudou.

Os chamados elementos de tratamento são espécies de miragem colocadas em letra de forma por legislações contemporâneas, mas que, a rigor, não caracterizam garantias reais dos presidiários, posto que o sistema não institui sanções para o descumprimento. Comprovadamente não existem em nossos estabelecimentos penais os projetos e as realizações efetivas para materializar os objetivos assinalados pelos programas formais de tratamento. Na malancólica denúncia de autorizados especialistas, a administração prisional tem como meta prioritária o evitamento de fugas.

A prisionalização é terapia de choque permanente, cuja natureza e extensão jamais poderiam autorizar a tese enfedonha de que constitui uma etapa para a liberdade, assim como se fosse possível sustentar o paradoxo de preparar alguém para disputar uma prova de corrida, amarrando-o a uma cama.

Relatando as suas memórias do cárcere, na intensidade dos maiores sofrimentos, Dostoiewski escreveu que o famoso sistema celular só atinge, estou disto convencido, um fim enganador, aparente. Suga a seiva vital do indivíduo, enfraquece-lhe a alma, amesquinha-o, aterroriza-o, e, no fim, apresenta-no-lo como modelo de correção, de arrependimento, uma múmia moralmente dissecada e semilouca".(20)

Somos sabedores que não obstante o espírito ressocializador e humanitário da Lei de Execução Penal e da Constituição Federal, o legislador mais recente, como, ainda, julgadores entorpecidos pelo desejo de punição imediata, sob o falso escudo de defensores da sociedade, exacerbam a pena privativa de liberdade, estigmatizando o criminalizado.

 

2.3. SITUAÇÕES DETECTADAS NO SISTEMA ATUAL

De início, traz-se à baila, a problemática referente à execução penal do estrangeiro com decreto expulsório.

Segundo entendimento que se tem firmado, ao estrangeiro com decreto expulsório, ficaria vedado a concessão de qualquer benefício no cumprimento de sua pena.

Isto porque, por se tratar de ato de Estado, a expulsão de estrangeiro é ato soberano e não pode ser contrariado pela Lei de Execução Penal, que é lei instrumental emanada pelo mesmo poder de Estado.

Noutra quadra, alegam que o que justifica a progressão de regime prisional é possibilitar que o condenado, no decorrer do cumprimento da pena, vá paulatinamente se inserindo no meio social e, no caso, isto não deve suceder, porque não se pode correr o risco de frustrar o decreto de expulsão.

Na verdade, a legislação vigente não impede o cumprimento de pena, na forma progressiva, também para o estrangeiro.

O Decreto-Lei n. 4.865/42 proíbe, especificamente, a concessão de "sursis" aos estrangeiros que se encontrem no País em caráter temporário.

Ocorre que, nem o referido texto legal pode ser invocado em desfavor do estrangeiro, pois, com certeza, é incompatível com a Carta Constitucional em vigor, que propala o princípio da isonomia, como, igualmente, com a Lei n. 6.815/80, que revogou toda a legislação pretérita e não retomou qualquer tipo de restrição ao estrangeiro preso (art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil).

Em contexto similar, verifica-se também que, através de Leis provindas com ranço de autoritarismo, o legislador afronta direitos individuais, fazendo gerar total falta de sintonia entre o intento da Carta Constitucional e os demais diplomas.

Vejamos, por exemplo, o artigo 5º, LXVI, da Constituição Federal:

"Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança";

Nesse caso, a regra atinente à liberdade provisória encontra-se no Código de Processo Penal, não podendo o legislador infra-constitucional, contagiado por determinados fatos sociais e por meio de textos isolados, formular vedações extemporâneas, fragmentando a ordem jurídica e institucional, como ocorre com a Lei n. 8.072/90, que extrapola, inclusive, a exceção prevista no artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal.

Sendo assim, atento ao princípio da isonomia e à L.E.P., ao estrangeiro, em seu cumprimento de pena, deve-se assegurar igualdade de tratamento em relação aos nacionais.

Mesmo que se argumente que o princípio da isonomia deva só prevalecer aos estrangeiros residentes no País (art. 5º, caput, da Constituição Federal), ainda assim, não há como se aceitar qualquer restrição.

Nesse sentido, menciona-se trecho do parecer da Procuradoria Geral da República, concebido pelo Dr. Carlos Eduardo Vasconcelos, em RT 605/387:

(...)"a palavra residente na Constituição não pode ser apreendida na acepção restrita, isto é, como sinônimo de portador de visto permanente. (art. 16, da Lei n. 6.815/80). Tal sentido técnico e formal não nos afigura correspondente à noção comum de residente, melhor reproduzida pela lei civil"(...)

Portanto, ao estrangeiro, em situação irregular, quer com a intenção de transitoriedade, quer com o ânimo de permanência, mas ajustado ao previsto nos artigos 31 à 42, do Código Civil, deve ser proporcionado tratamento não discriminatório.

Conforme artigo 40, do Código Civil:

"O preso(...), tem o domicílio no lugar onde cumpre sentença"(...)

Assim, é de se concluir que, o cumprimento da pena, na forma progressiva, não se opõe ao decreto expulsório de estrangeiro, como, por igual, o decreto de expulsão não pode deslustrar a Lei de Execução Penal, nem tampouco, a Carta Constitucional em vigor.

Pensar o inverso, é impor ao condenado estrangeiro tratamento desumano e degradante, o que não se coaduna com a nossa tradição jurídica. É querer, com desejo de vingança, que o condenado volte ao seu País, somente após o cumprimento integral de sua pena no cárcere.

Decerto, esse não é o intento da legislação pátria em vigor, ex vi o artigo 1º, da própria Lei de Execução Penal:

"A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado".

No campo do direito internacional, o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, ratificada no País em 7.3.68, que assim prevê:

"artigo 5º

a) direito a um tratamento igual perante os tribunais ou qualquer orgão que administre a justiça";

Da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada no País em 25.9.92, que assim prevê:

"artigo 1º

1. As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados.

Artigo 24

Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei".

Assim, também, acompanhando nosso posicionamento, transcreve-se, trecho de decisão do E. TACRIM/SP, no Agravo em Execução n. 455.193/0, que concede benefício a estrangeiro com decreto expulsório:

"(...) Ora, sendo o livramento condicional um dos modos de cumprimento da pena, não pode ser considerado óbice para sua concessão o decreto de expulsão.

A expulsão do agravante foi decretada sem prejuízo das penas a que estiver sujeito.

Com o livramento não se extingue a pena. Continua o liberado a cumprí-la em liberdade, revogável a qualquer tempo, desde que descumpridas as condições.(...)"

Igualmente, menciona-se trechos de decisão do E. TJ/SP, no Agravo em Execução n. 182.365-3/5:

"(...)O direito à progressão ao regime menos rigoroso, em atendimento às exigencias do artigo 112, da Lei n. 7.210/84, insere-se como direito subjetivo público do sentenciado integrando-se ao rol dos direitos materiais penais, revestidos pela proteção da norma intertemporal já enfocada. (...)

A observação de que o apenado, cuja expulsão já está determinada, não pode merecer o benefício, porque não está apto a trabalhar e a ressocializar-se no meio cujo acesso lhe é vedado, decerto que emerge de um raciocínio inadmissível.

A progressão não existe pro societate apenas, mas se impõe como vantagem pessoal ao apenado, pois o alivia substancialmente da carga punitiva.

Permitiu-se que o agravante trabalhasse no cárcere, tanto que conseguiu a remição de uma parte da pena recebida.

O trabalho que prestou ou aquele que há de prestar por conta do regime atenuado não se caracteriza como apanágio de uma liberdade conquistada, porém antes como encargo purificador inerente à expiação da culpa.

A outorga da vantagem ao co-réu, posto na mesma situação jurídica do agravante, é outro peso que serve de alavancagem da concessão do benefício, pois não mostra sentido que o Estado-Juiz, sem uma justificativa convincente, trate desigualmente pessoas que vivem problemas absolutamente iguais, (...)"

No mesmo passo, reproduz-se o voto vencido do Sr. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, em nosso RHC n. 6.121/São Paulo (96/0078630-5):

"Sr. Presidente, peço respeitosa vênia para dissentir. Parece serem duas situações diversas: a de alguém condenado criminalmente e pela qual responderá a uma pena criminal. A outra, é a de, por ser estrangeiro, estar preso para efeito de extradição ou de expulsão. São duas causas distintas. Consequentemente, como no caso presente, a relação que se está estudando e que é objeto do recurso é a condenação criminal. Insisto, nada tem a ver juridicamente com a outra. Em face disso, nada impede ter direito de progressão, que decorre da individualização da pena, princípio constitucional, e das normas do Código Penal, do Código de Execução Penal.

Paralelamente há prisão para aguardar o processo de extradição ou de expulsão. Evidente, dar-se-á, na hipótese, a preferência à execução da prisão. Quanto ao fato de ter ou não direito à futura submissão ao regime penitenciário não me parece haver impossibilidade de se atender. Não se quer dizer que se vá expedir decreto de liberação, alvará de soltura. Apenas reconhecer-lhe o direito à progressão. Em face dessas considerações e nos limites postos, data venia, conheço do recurso e lhe dou provimento".

De qualquer forma, por fim, convém salientar que, muito embora a Lei n. 6.815/80 proíba o exercício da atividade remunerada (condição obrigatória, p. ex. aos benefícios de Livramento Condicional e Regime Aberto) pelo estrangeiro que se encontre no Brasil ao amparo de visto de turista, de trânsito ou temporário, há que se asseverar que, ainda que exista processo ou tenha ocorrido condenação, com o trânsito em julgado, ou aplica-se o princípio da isonomia, em sua plenitude (art. 5º, caput, da Constituição Federal.), proporcionando o Estado condições para tal, ou opta-se pela extradição ou expulsão (art. 67, da Lei n. 6.815/80).

O que não se pode conceber é a restrição aos direitos e garantias fundamentais, sob o ônus de ofensa ao direito interno; tratados internacionais devidamente ratificados e à Constituição da República Federativa do Brasil.(21)

Na mesma linha de raciocínio, deve-se evitar, por igual, as penas que ultrapassem a regra prevista no artigo 75, do Código Penal. Na fase de conhecimento, "nos casos em que a soma matemática coopere para uma iniquidade manifesta quanto ao resultado, se deveria admitir uma redução especial das penas pela via da remissão, prevista na parte final do inciso III do artigo 621 do código de processo penal".(22)

Mesmo que tal providência não ocorra, resta-nos, em sede de execução penal, a utilização do mesmo artigo 75, do Código Penal, viabilizando a postulação de benefícios sobre aquele limite temporal, evitando-se, assim, punições irracionais que excedam as necessidades preventivas.

Observa-se, igualmente, em execução penal, que vários sentenciados não obtêm pareceres favoráveis nas avaliações criminológicas a que são submetidos (art. 112, parágrafo único, da LEP), permanecendo em Cadeias Públicas ou em Estabelecimentos Penais, de regime fechado, por período descomedido.

Atualmente, na forma em que os laudos criminológicos são elaborados, constata-se que os técnicos estão reavaliando informações que seriam necessárias para a individualização da execução penal. Como o exame previsto no artigo 8º, da Lei de Execução Penal, não é realizado; independente da entrevista, testes e relato da vida passada, a conclusão deve permanecer vinculada ao tempo no cárcere.

Além disso, muitos técnicos apontam aspectos negativos, como crítica incipiente; excitabilidade e impulsividade acentuadas; lacônico e superficial; tendência a dissimulação; equilíbrio improdutivo, ou seja, por isso, não adequado a terapêutica prisional, impondo ao sentenciado, como sugestão, uma permanência maior no regime mais rigoroso.

Os Exmos. Julgadores, por conta da quantidade excessiva de processos, não conseguem detectar avaliações viciadas, aceitando o efetivo distanciamento entre os técnicos (psiquiátra, psicólogo e assistente social) e o sentenciado.

É inegável que muitas características apontadas nos laudos criminológicos são, em verdade, absolutamente comuns a um número ilimitado de pessoas que se encontram dentro e fora das prisões.

Algumas delas são estimuladas pela própria vivência no cárcere, na maioria das vezes, em condições totalmente desumanas.

Por isso, indaga-se ...

Quando os laudos criminológicos não mais terão efeito vinculativo, determinando na prática o que a regra prevê na teoria?

A conclusão interdisciplinar deve permanecer adstrita ao requisito objetivo e adequada a nossa realidade prisional e social, sob pena de ter-se verdadeiro bis in idem.

Por conta de tal situação, não podemos esquecer que, em um determinado dia, se não for modificado no cárcere, o preso, recuperado ou não, retornará à sociedade.

Noutra quadra é de se mencionar que, há muito tempo, as Cadeias Públicas transformaram-se em verdadeiros depósitos de presos, com celas diminutas, cada qual com dezenas de presos totalmente entregues ao ócio. Dentre esses, os que menos encontramos são os presos provisórios, como a regra dita, mas, ao contrário, a superpopulação ocorre por conta dos presos definitivos, muitos de regime semi-aberto; presos com medida de segurança; outros com benefícios de sursis, albergue e livramento condicional revogados.

 

2.4. PROVIDÊNCIAS EM ANDAMENTO

Não obstante a interposição de diversos remédios jurídicos para corrigir situação de ilegais constrangimentos, parece-nos que, nesse particular, no Estado de São Paulo, no 2º semestre de 1998, serão integradas ao sistema penitenciário existente 24 novas Unidades Prisionais, o que proporcionará, ao menos, o cumprimento da pena em estabelecimento adequado. Por outro lado, desde 25.8.98, já vigora o Provimento n. 22/98, do Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, proibindo a permanência de presos condenados em Cadeias Públicas.

Em caso de recaptura de preso foragido ou de condenado definitivamente, o provimento fixa o prazo de 5 dias para que seja feita a transferência para o sistema penitenciário.

 

2.5. POSICIONAMENTO FINAL

Por fim, conclui-se que, sem a perseverança das pessoas de bem, apesar do direito posto, não conseguiremos erradicar os tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes.

De qualquer modo, não se deve olvidar que, é tempo, outrossim, de dedicar atenção à delinqüência juvenil, buscando soluções que evitem o agravamento do quadro que se busca reverter.

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(1) Por Cristina de Freitas Cirenza.

(2) FERNANDES, Paulo Sérgio Leite e FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer. Aspectos jurídico-penais da tortura. 2. ed. Editora Ciência Jurídica, 1996. p. 102.

(3) FRANCO, Alberto Silva. Tortura: breves anotações sobre a Lei n. 9.455/97. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 19, p. 55, jul./set. 1997.

(4) FERNANDES, Paulo Sérgio Leite e FERNANDES Ana Maria Badette Bajer, op. cit., p. 149.

(5) FOUCAULT. Vigiar, apud Fernandes, op. cit. supra, p. 155.

(6) FERNANDES, op. cit. p. 156-157.

(7) ANDREUCCI, Ricardo Antunes, Violência e estrito cumprimento do dever legal, Separata dos Arquivos da Polícia Civil de São Paulo, 26:250, 2º semestre.

(8) Apud de João Bernardino Gonzaga, A inquisição em seu mundo, 7. ed., São Paulo, Saraiva, 1994, p. 91.

(9) Apud de Bucikay Eymerich, Manual dos Inquisidores, 2. ed., Rosa dos Tempos, 1993, p. 210.

(10) Lições de direito penal: a nova parte geral, 4. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 33.

(11) SILVA, José Geraldo da. A lei da tortura interpretada, Editora de Direito.

(12) LEAL, João José. A Convenção da ONU sobre a Tortura, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 671,

p. 61-63, set. 1991.

(12) Op. cit., p. 165, 166, 167.

(14) FRANCO,Alberto Silva, op. cit., p. 58.

(15) MARZAL, Alejandro del Toro, La reforma penal del derecho, p. 271, Universidade Autonoma de Barcelona, apud Alberto Silva Franco, op. cit.

(16) ANTÓN, Vives. Derecho penal: parte general. Valencia: Tirant lo Blanch, 1990, p. 114, apud Alberto Silva Franco, op. cit.

(17) PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. p. 221-222.

(18) PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 300.

(19) Por Clayton Alfredo Nunes.

(20) Dotti, René Ariel. Bases e Alternativas para o sistema de penas, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 111-116.

(21) Nunes, Clayton Alfredo. O processo de execução penal e o estrangeiro com decreto expulsório, Boletim IBCCrim, n. 68, p. 16-17, jul./1998.

(22) Zaffaroni, Eugeni Raúl , Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1997. p. 851.

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