ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

Eurico de Andrade Azevedo*

 

1. A organização social é uma qualificação, um título, que a Administração outorga a uma entidade privada, sem fins lucrativos, para que ela possa receber determinados benefícios do Poder Público (dotações orçamentárias, isenções fiscais etc.), para a realização de seus fins, que devem ser necessariamente de interesse da comunidade.

2. A locução organização social, a nosso ver, é muito genérica, pois ambas as palavras têm um significado muito abrangente. De qualquer forma, foi a denominação que o legislador resolveu outorgar àquelas entidades, em substituição ao desmoralizado título de utilidade pública, concedido a entidades assistenciais que de beneficentes só tinham o rótulo, por servirem a interesses particulares. Conforme expôs o Professor Paulo Modesto (então Assessor Especial do Ministério de Administração e Reforma do Estado), no XII Congresso de Direito Administrativo, em agosto de 1998, na impossibilidade política de revogar a Lei n. 91, de 1935, que regulava a aprovação do benefício "de utilidade pública", o Governo resolveu aprovar outra lei, criando a nova qualificação.

3. Nos termos da Lei federal n. 9.637, de 18.5.1998, o Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sociais sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos os requisitos previstos nesse mesmo diploma.

O objetivo declarado pelos autores da reforma administrativa1, com a criação da figura das organizações sociais, foi encontrar um instrumento que permitisse a transferência para as mesmas de certas atividades que vêm sendo exercidas pelo Poder Público e que melhor o seriam pelo setor privado, sem necessidade de concessão ou permissão. Trata-se de uma nova forma de parceria, com a valorização do chamado terceiro setor, ou seja, serviços de interesse público, mas que não necessitam sejam prestados pelos órgãos e entidades governamentais. Sem dúvida, há outra intenção subjacente, que é a de exercer um maior controle sobre aquelas entidades privadas que recebem verbas orçamentárias para a consecução de suas finalidades assistenciais, mas que necessitam enquadrar-se numa programação de metas e obtenção de resultados.

4. Essas pessoas jurídicas de direito privado são aquelas previstas no Código Civil, sociedades civis, religiosas, científicas, literárias e até mesmo as fundações (art. 16, I). Podem já existir ou serem criadas para o fim específico de receberem o título de organização social e prestarem os serviços desejados pelo Poder Público. O que importa é que se ajustem aos requisitos da lei.

5. Quais são os requisitos básicos?

a) não podem ter finalidade lucrativa e todo e qualquer legado ou doação recebida deve ser incorporado ao seu patrimônio; de igual modo, os excedentes financeiros decorrentes de suas atividades;

b) finalidade social em qualquer das áreas previstas na lei: ensino, saúde, cultura, ciência, tecnologia e meio ambiente;

c) possuir órgãos diretivos colegiados, com a participação de representantes do Poder Público e da comunidade;

d) publicidade de seus atos;

e) submissão ao controle do Tribunal de Contas dos recursos oficiais recebidos (o que já existe);

f) celebração de um contrato de gestão com o Poder Público, para a formação da parceria e a fixação das metas a serem atingidas e o controle dos resultados.

6. Submetendo-se a essas exigências e obtendo a qualificação de organização social, a entidade poderá contar com os recursos orçamentários e os bens públicos (móveis e imóveis) necessários ao cumprimento do contrato de gestão. Os bens ser-lhe-ão transferidos mediante permissão de uso e os recursos serão liberados de acordo com o cronograma de desembolso estabelecido no contrato de gestão. Mais ainda: é facultado ao Poder Executivo a cessão especial de servidor à organização social, com ônus para o órgão de origem.

7. Como se vê, se o Poder Público cumprir efetivamente as obrigações assumidas no contrato de gestão, pode ser de grande interesse para as entidades privadas que já venham prestando serviços de interesse da comunidade obterem sua qualificação como organização social, ainda que com certa perda de autonomia.

8. Nesse ponto, convém alertar que o Conselho de Administração da entidade deverá exercer papel fundamental na sua administração. Em sua composição, os representantes da comunidade e do Poder Público devem constituir maioria absoluta, controlando os atos da diretoria executiva, cujos membros serão pelo Conselho designados e dispensados.

De certa forma, o Poder Público se assenhoreia do controle da entidade privada – com a colaboração da comunidade – para que ela possa vir a exercer as atividades sociais desejadas, utilizando-se de recursos oficiais. Aliás, segundo o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, publicação do Ministério de Administração e Reforma do Estado, um dos objetivos desse novo tipo de parceria é precisamente reforçar o controle social direto desses serviços, através dos seus conselhos de administração.

9. A qualificação da entidade privada como organização social é ato administrativo discricionário do Poder Público. No âmbito federal, o exame da conveniência e oportunidade da medida cabe ao Ministro ou titular do órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao objeto social da entidade pretendente, assim como ao Ministro da Administração. Essa discricionariedade é criticada por alguns doutrinadores,2 por entenderem tratar-se de uma brecha perigosa no princípio da legalidade, dando azo a decisões subjetivas dos governantes.

Não obstante, como esclarece Hely Lopes Meirelles, poder discricionário não se confunde com poder arbitrário: "A faculdade discricionária distingue-se da vinculada pela maior liberdade de ação que é conferida ao administrador. Se para a prática de um ato vinculado a autoridade está adstrita à lei em todos os seus elementos formadores, para praticar um ato discricionário é livre, no âmbito em que a lei lhe confere essa faculdade."3

Ora, a lei confere ao Executivo a liberdade de examinar a conveniência e a oportunidade de qualificar como organização social a entidade pleiteante, precisamente para verificar se é de interesse público transferir ao setor privado o serviço que vem sendo realizado pela própria Administração, ou, então, estimular o serviço já prestado pela entidade privada com recursos públicos. É indispensável que a Administração possa aferir as vantagens e desvantagens que possam advir para a comunidade dessa transferência.

A Administração há de justificar devidamente o seu ato: o porquê da outorga (ou não) do título jurídico de organização social à entidade que o pleitea. Todo e qualquer ato administrativo deve ser motivado, principalmente aqueles resultantes do poder discricionário, pois são precisamente estes que precisam estar embasados na clara demonstração do interesse público que os fundamenta. Celso Antônio Bandeira de Mello diz bem que, tratando-se de ato administrativo discricionário, "o ato não motivado está irremissivelmente maculado de vício e deve ser fulminado por inválido."4

10. O Poder Executivo também poderá desqualificar a entidade privada, retirando-lhe o título de organização social, mas essa providência há de estar baseada no descumprimento das disposições contidas no contrato de gestão e devidamente apuradas em processo administrativo, assegurado o direito de defesa dos dirigentes da organização.

11. O contrato de gestão, portanto, é o instrumento jurídico básico dessa nova forma de parceria entre o setor público e o privado. Embora a lei denomine esse instrumento de contrato, na verdade, trata-se de um acordo operacional entre a Administração e a entidade privada – acordo de direito público que mais se aproxima de um convênio, em que as partes fixam os respectivos direitos e obrigações para a realização de objetivos de interesse comum. Mas como os convênios também ficaram desmoralizados (porque ninguém cumpria a sua parte e não havia sanções), resolveu-se procurar instrumento mais eficaz.

12. Nos termos da lei federal, o contrato de gestão discriminará as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da organização social, mas sobretudo deverá especificar o programa de trabalho proposto, a fixação das metas a serem atingidas e os respectivos prazos de execução, bem como os critérios objetivos de avaliação de desempenho, mediante indicadores de qualidade e produtividade. Além disso, o contrato deve prever os limites e critérios para despesa com remuneração e vantagens a serem percebidas pelos dirigentes e empregados da organização social, além de outras cláusulas julgadas convenientes pelo Poder Público.

13. A eficácia do contrato de gestão está precisamente na possibilidade do exercício do controle de desempenho. Havendo indicadores objetivos de qualidade e produtividade, metas a serem alcançadas e prazos de execução, o Poder Público pode perfeitamente acompanhar os trabalhos da entidade privada e verificar a atuação de seus dirigentes, para tomar as providências cabíveis, que podem ir desde a substituição dos diretores (deve-se lembrar que os representantes do Poder Público e da comunidade constituem maioria absoluta no Conselho de Administração) até a cassação do título de organização social.

14. E os Estados e Municípios perante a Lei federal n. 9.637/98? Na verdade, os Estados e Municípios, se quiserem se utilizar dessa nova forma de parceria na sua administração, deverão aprovar suas próprias leis. Deve-se lembrar que a matéria diz respeito à forma de prestação de serviços de competência da respectiva entidade estatal. Por conseguinte, somente a entidade estatal competente pode legislar sobre o tema. A Lei n. 9.637/98 não é uma lei nacional, cujas normas gerais seriam aplicáveis aos Estados e Municípios, tanto assim que ela não faz menção ao assunto, como ocorre, por exemplo, com a Lei Geral de Licitações e Contratos (Lei n. 8.666/93, art. 1º, parágrafo único).

15. A Lei federal n. 9.637/98 pode servir como modelo para os Estados e Municípios, com as adaptações indispensáveis às suas peculiaridades, em especial no que diz respeito aos serviços que entendam convenientes que sejam prestados pelo setor privado. Em alguns lugares serão atividades voltadas à cultura (proteção ao patrimônio histórico, museus etc.), em outros à preservação do meio ambiente (parques florestais, jardins públicos), em outros ao ensino e à pesquisa (institutos de pesquisa) ou à saúde (ambulatórios, creches, asilos) etc. A vantagem de se acolher o modelo federal é a possibilidade de se obter para as organizações sociais do Estado ou Município os mesmos benefícios concedido às organizações sociais da União (repasse de verbas federais, sessão de bens etc.), desde que a legislação local não contrarie os preceitos da lei federal (art. 15).

16. Note-se que não é obrigatório o modelo federal. É apenas conveniente. Segundo consta, muitos Estados e Municípios já aprovaram suas leis, ainda com base na Medida Provisória n. 1.648/97 (da qual resultou a Lei n. 9.637/98), alguns com pleno êxito, como Porto Alegre.

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* Procurador da Justiça aposentado e sócio do Escritório Andrade Azevedo e Alencar Consultoria Jurídica.

1. Plano diretor da reforma do aparelho do Estado. Brasília: Ministério da Administração e Reforma do Estado - MARE, 1995.

2. Perpétua Valadão Casali Bahia e Paulo Moreno Carvalho (Organizações sociais, qualificação como ato vinculado do poder público. Tese apresentada ao XXIV Congresso Nacional de Procuradores do Estado de São Paulo, 30.8 a 3.9 de 1998, Campos do Jordão, SP, publicada pelo Centro de Estudos da Procuradoria do Estado de São Paulo, p. 458-477) afirmam que, preenchendo a pessoa jurídica de direito privado os requisitos exigidos pela lei, não pode o Poder Executivo recusar a qualificação, já que se trata de aferir condições formais de habilitação, não existindo espaço para a intelecção discricionária do administrador, cujo ato deve simplesmente alcançar a finalidade legal. Os autores examinam o problema também frente à Lei baiana n. 7.027/97, regulamentada pelos Decretos

ns. 7.007 e 7.008 do mesmo ano, perante os quais, havendo mais de uma organização social que se habilite à prestação do serviço desejado pelo Estado, faz-se mister a instauração de processo seletivo. Neste caso, justifica-se a preocupação dos autores, uma vez que a citada qualificação assemelhar-se-ia à fase de habilitação no procedimento licitatório.

3. Direito administrativo brasileiro. 23. ed. atualizada por Eurico de Andrade Azevedo e outros. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 103-104.

4. Curso de direito administrativo. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 245-246.

 

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