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Superior Tribunal de Justiça

Cautelar de seqüestro

Conflitos fundiários no Pontal do Paranapanema

Recurso Especial N. 43.248-0-SP*

Medida Cautelar de Seqüestro. Terras devolutas. Possibilidade de rixa e danos ao imóvel.

1. A expressão "rixa" do artigo 822, I, do Código de Processo Civil refere-se a quaisquer confrontos físicos que possam envolver as partes do processo ou terceiros em disputa pelo imóvel.

2. O periculum in mora, na hipótese dos autos, é gritante e não pode ser desconhecido pela Justiça, e reside na possibilidade de luta armada entre os fazendeiros locais e os sem-terra e de parcelamento do solo e desmatamentos, desordenados, comprometendo a fauna, a flora e as nascentes d’água, além de revelar o grave conflito social pela ocupação do solo.

3. Recurso especial conhecido e provido, em parte.

Relatório

O Excelentíssimo Senhor Ministro Carlos Alberto Menezes Direito:

A Fazenda do Estado de São Paulo interpõe recurso especial sob a alegação de que o Acórdão de fls. violou o artigo 811, I, do Código de Processo Civil ao confirmar a sentença de primeiro grau que extinguiu medida cautelar de seqüestro, entendendo que a autora-recorrente não demonstrara o periculum in mora.

Argumenta que cerca de duzentas famílias, aproximadamente oitocentas pessoas invadiram imóvel rural ocupado por Antônio Sandoval Netto que, a sua vez, ingressou com ação de manutenção de posse, obtendo a liminar requerida. Ocorre que a área em disputa consiste em terras devolutas, situadas no Município do Mirante do Paranapanema-SP, como demonstrado, devendo a medida cautelar de seqüestro ser deferida para que, a título de periculum in mora, evitem-se rixas entre as famílias ditas invasoras e o réu, ocupante da área. Relativamente aos danos, diz que sempre existem em situações de invasões de terras públicas, pois as terras são exploradas e desmatadas, quando não "revendidas".

Houve contra-razões e o especial foi admitido.

É o relatório.

Voto

O Excelentíssimo Senhor Ministro Carlos Alberto Menezes Direito:

A sentença que extinguiu a medida cautelar, mantida pelo Aresto recorrido, dispôs, verbis:

"Presentes a legitimidade das partes, a possibilidade jurídica do pedido e o fumus boni iuris, não demonstrou a autora, no entanto, o periculum in mora, o que acarreta a ausência do interesse de agir."

A questão única a ser apreciada nestes autos, portanto, trata do periculum in mora.

A Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, em parecer detalhado, impugnou ponto a ponto a sentença de primeiro grau:

"Na forma do artigo 822 do Código de Processo Civil, pode-se afirmar que a ação cautelar de sequestro se funda na litigiosidade da coisa, ou seja, na "incerteza subjetiva em relação a ela" (Pontes de Miranda, Comentários ao CPC, tomo VIII, p. 327).

Recapitulemos, então, brevemente, o caso em tela: cerca de 200 famílias de trabalhadores sem-terra – num total aproximado de 800 pessoas – invadiram imóvel rural ocupado por Antônio Sandoval Netto, que ingressou com ação de manutenção de posse e, imediatamente, obteve liminar. Em seguida, a Fazenda do Estado, demonstrando que a terra é devoluta, solicitou ao digno magistrado o provimento de sequestro da área, visando tirá-lo da posse (rectius: detenção) dos co-réus (e litigantes) e entregá-la a depositário fiel enquanto transcorresse a ação principal, petitória (cf. Ovídio Baptista da Silva, As ações cautelares e o novo processo civil, p. 175).

Grife-se que a pretensão da Fazenda do Estado justifica-se em razão do título de propriedade da terra, de que dispõe e que o imóvel objetivado – a fazenda São Bento, situado no Município de Mirante do Paranapanema – é um latifúndio com mais de 5.000 ha.

No entanto, apesar da relação de complementariedade perfeita que exsurge entre a premissa maior (o art. 822/I do CPC) e a premissa menor (o fato) do silogismo judiciário, o magistrado entendeu por bem julgar a Fazenda carecedora da ação por não vislumbrar seu interesse de agir.

Antes de analisarmos este frágil fundamento, cabe referir a dois outros argumentos – igualmente insustentáveis – invocados na sentença, à fls.: I. o problema social foge da "área" (sic) judicial; 2. o sequestro é medida "violenta, odiosa e de exceção".

Em relação ao segundo ponto, poderia se perguntar: e o despejo não é violento? e a penhora não é odiosa? e a prisão civil não é exceção?

Nem por isso, com certeza, o douto juiz deixa de utilizar-se de tais instrumentos legais. Logo, o argumento não presta por envolver juízo de valor.

A respeito do outro ponto – o de que o problema social não tem a ver com o Poder Judiciário – deve-se, com ênfase, apontar seu caráter ideológico bem como o fato dele ir de encontro a tudo o que a doutrina tem pensado e escrito ultimamente sobre o tema (v. Direito e justiça: a função social do judiciário, organizador José Eduardo Faria, Atlas, 1989).

Aliás, em face mesmo da utilização desse argumento, é de se questionar, com Faria, "até que ponto estarão os tribunais e seus magistrados aptos, funcionais e tecnicamente, para lidar com conflitos classistas e transgressões de massa envolvendo grupos, classes e coletividades? Dada a explosão de litigiosidade em sociedades estigmatizadas pelas contradições socio-econômicas e por formas inéditas de luta, confronto e resistência, como é o caso da sociedade brasileira, as diferentes instâncias terão condições de continuar desempenhando com um mínimo de eficácia suas funções tradicionais de absorver as tensões e reduzir as incertezas do sistema político, limitando e "desarmando" os conflitos, bem como impedindo sua generalização? (in A magistratura em face dos conflitos coletivos, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 31/140).

Ponto fulcral da sentença atacada, o interesse de agir, como bem afirma o magistrado, é definido pelo binômio necessidade-adequação.

Porém, entende ele que não ocorre a adequação (fls. 20). Adequação "é a relação existente entre a situação lamentada pelo autor ao vir a juízo e o provimento jurisdicional concretamente solicitado. O provimento, evidentemente, deve ser apto a corrigir o mal de que o autor se queixa, sob pena de não ter razão de ser" (Cintra, Grinover, Dinamarco, Teoria geral do processo, n. 158).

Ora, é impossível não se vislumbrar a adequação no caso em tela. Os co-réus disputam a posse (na verdade, a detenção posto que a terra é pública) sobre área estadual, havendo fundado receio de rixas (no sentido vulgar do termo) e danificações, visto tratar-se de conflito coletivo onde o componente emocional atua de modo exacerbado. Como, então, não se acolher a pretensão da Fazenda Pública estadual – proprietária do imóvel – de se retirar o mesmo da detenção de todos os co-réus, enquanto se processa a ação reivindicatória? É de se ressaltar também que o pressuposto do risco de confronto que o magistrado considerou não existir à fls. da sentença (prolatada quando a liminar ainda não havia sido cumprida), se faz presente na petição inicial da ação de manutenção – por ele acolhida – do co-réu Antonio Sandoval Netto. Consta dessa peça, no item 7: "Essa situação calamitosa, se perdurar por mais tempo, acarretará o total colapso da fazenda, trazendo inúmeros prejuízos a seus proprietários. Além disso, há o perigo de irromper a violência, já que os invasores são os mesmos que sequestraram os oficiais de justiça e quiseram enfrentar a polícia, tendo sido o Batalhão da Polícia Militar de Presidente Prudente insuficiente para a evacuação da área invadida, sem perpretar violência".

Por outro lado, ao contrário do que consta da r. sentença, à fls., a manutenção de posse – cuja liminar foi rapidamente concedida – em absoluto não resolveu o conflito. Isto porque ele permanece inalterado não só na relação Estado/co-réu Antonio Sandoval Netto, como, em estado latente, entre todas as partes.

Hoje, cumprida que foi a liminar, os trabalhadores sem terra, co-réus, alojaram-se em área próxima à do imóvel (Estação desativada da FEPASA), e a tensão continua, dadas as péssimas condições em que se encontram, com falta de água, alimentos, etc. O conflito não foi "desarmado". Neste sentido, a sentença nada resolveu, ou melhor, se extinguiu a lide de direito formal não resolveu e nem encaminhou como devia a resolução do problema social (a lide de direito material) subjacente mas, ao contrário, até mesmo ampliou a tensão existente numa região já conflituosa, em razão da injustiça praticada.

Para o douto magistrado, não ocorre também para o Estado interesse na tutela cautelar. Porém, se a cautelar de sequestro, na modalidade do artigo 822, 1 do CPC, existe para prevenir confrontos, para resguardar interesses, para evitar danos, depredações etc., em disputa sobre a propriedade, a posse ou a mera detenção de imóveis, é claro e evidente, no caso presente, que tal "resultado útil" somente pode ser alcançado com o provimento da medida requerida, que é preparatória – como ficou dito – para futura reivindicação do bem. Daí sua necessidade para a pacificação do local.

Aliás, segundo entendem Galeno Lacerda/Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, "às vezes, o titular do domínio busca reaver a posse, que está em poder de outrem contrariamente ao direito, utilizando ação reivindicatória fundada no direito de propriedade. Aí, mesmo não ocorrendo litígio sobre a propriedade, torna-se indiscutível a incidência do artigo 822, I, em razão de disputa sobre a posse" (Comentários ao CPC, v. VIII, tomo II, p. 124).

Para que esta lição se mostre, por maior razão, aplicável ao caso, é de se ressaltar que a lide presente também envolve conflito sobre a propriedade. O co-réu Antonio Sandoval Netto se diz, na petição inicial da ação de manutenção de posse, "legítimo senhor e possuidor" do imóvel (n. 1). A Fazenda do Estado junta título de domínio que comprova ser ela, de fato, a proprietária do mesmo. Portanto, só por isso – se não pelo que mais consta deste apelo –, se justifica a pretensão da Fazenda, a julgar pelo que ensinam Galeno Lacerda/Carlos Laberto Álvaro de Oliveira.

Em suma, não adianta a manutenção do status quo, como afirma a sentença à fls. 20. Se este status quo é socialmente litigioso, o que se espera deste Egrégio Tribunal é que reveja a decisão de primeiro grau – invalidando-a por error in procedendo – e proveja a presente apelação, determinando o sequestro do imóvel.

Como escreveu a ilustre Desembargadora Shelma Lombardi de Kato, do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, o Brasil é um País de paradoxos – "dispõe de extensas áreas agricultáveis, pela sua dimensão territorial. Mas o povo não tem terra para plantar. O lavrador é expulso dos campos. A propriedade concentra-se nas mãos de latifundiários e de grupos econômicos, nacionais e estrangeiros". Assim, "só uma visão do direito voltada para a realidade social pode salvar o País e impedir a desagregação de seu povo" (A crise do direito e o compromisso da libertação in Direito e Justiça, cit., p. 175 e 180).

O Acórdão recorrido, proferido pela Egrégia Sexta Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, entende que o provimento desejado não é apto a corrigir o mal do qual se queixa a recorrente, não tendo se demonstrado a razão de ser a cautelar necessária para garantir a eficácia jurisdicional definitiva a ser ajuizada. Além disso, inexiste qualquer atrito ou disputa corporal entre os co-réus e a recorrente e a posse dos co-réus em nada prejudicaria o próprio bem.

Estes argumentos, entretanto, não resistem às bem lançadas razões da recorrente que ora transcrevo também como motivação para decidir. Confira-se:

"É evidente que se a lei não assegura a terceiros o direito à aquisição da propriedade de bens públicos, não lhes pode ainda assegurar a posse, ou a detenção que a isso se afigure, razão pela qual caracterizado está, no caso dos autos, em primeiro lugar, a legitimidade ativa da Fazenda do Estado ao requerer a medida cautelar pleiteada.

Por outro lado, também presentes estão o fumus bonis juris e o periculum in mora, isso porque as terras objeto da medida cautelar são terras devolutas, portanto bem público estadual, e o perigo da demora ao se aguardar a decisão a ser prolatada na ação principal decorre inclusive dos danos sociais e materiais possíveis de serem sofridos pela Recorrente em razão do conflito iminente na região, decorrente da disputa da posse por partes antagônicas, nenhuma delas proprietária da área.

É evidente, portanto, que como legítima proprietária dessa área que é, cabe a Recorrente pleitear o sequestro da mesma, como medida preliminar da ação principal, inclusive para evitar o possível confronto entre as partes litigantes, insuflado ainda pelos sedizentes proprietários, confronto este que originou litígio cuja notoriedade inclusive foi reconhecida no r. despacho concessivo da medida liminar acima referida.

Entende a Recorrente que o E. Tribunal recorrido, ao decidir que inexiste interesse material no resguardo do bem, não estando caracterizado o risco de dano para caracterizar o interesse de agir, laborou em equívoco, porque no caso cuida-se de terras públicas, disputadas por posseiros e "sem-terras", bastando tais fatos para preencher os dispositivos legais inovados e não reconhecidos nas decisões recorridas.

De fato, dano sempre existe em situações de invasão de terras públicas, pois as terras invadidas e ocupadas são exploradas e desmatadas, quando não "revendidas". Por outro lado, as invasões bem sucedidas – ou não coibidas – incentivam novas invasões, novos assentamentos, novos conflitos entre posseiros, tornando mais tarde praticamente irreversível a desocupação dessas áreas, tendo em vista o número de pessoas envolvidas e as conseqüências sociais traumáticas de remoção dos invasores, normalmente efetuada manu militare.

O periculum in mora, portanto, é inerente a uma situação fática como a tratada nos autos, razão pela qual urge a reforma da r. decisão recorrida, para se facultar à Fazenda do Estado os meios legais apropriados para a preservação do seu patrimônio e da própria tranquilidade social na área envolvida na pendenga, bem público que é objeto de disputa por terceiros, sem que tenha a sua legítima proprietária – a Fazenda do Estado – assegurado judicialmente o direito de preservação da integridade desse bem público, evitando danos e prevenindo situações futuras quiçá insolúveis, pelos efeitos gerados quando da manutenção da anômala situação possessória assegurada pelo r. Acórdão recorrido.

Entende a Recorrente, pois que o r. Acórdão recorrido, ao julgar que o fato do bem estar na posse dos Recorridos em nada prejudicaria o próprio bem no aspecto físico, não sendo possível, em razão de sua natureza, o seu desaparecimento ou desvio, infringiu os acima citados dispositivos constitucionais e legais, pois a lei assegura à Fazenda do Estado o uso da medida cautelar pleiteada quando se disputa bem que lhe pertence, razão pela qual estão presentes o periculum in mora e o fumus bonis juris. De fato, se o "bem imóvel não pode desaparecer ou ser desviado", como consta do r. Acórdão recorrido, poderá ele ser depredado, esgotado, desmatado. Além disso, o prejuízo da Recorrente não é somente de ordem material, é também de ordem moral, pelo fato de que fica a Fazenda do Estado sem o direito de usar a ferramenta legal apropriada para a defesa de direitos que lhe estão claramente assegurados pelos citados dispositivos legais."

O artigo 822, I, do Código de Processo Civil exige que haja fundado receio de rixa ou danificações no imóvel. A rixa aí tem uma conotação genérica, referindo-se a quaisquer brigas ou confrontos corporais e não faz restrições quanto às partes envolvidas, por isso o argumento de que inexiste a possibilidade de disputa física entre a autora e os réus não tem efeito algum.

Por outro lado, não é verdade, também, que os conflitos inexistam ou que a liminar concedida noutro processo judicial em favor do réu Antônio Sandoval Netto tenham abrandado as divergências. Ainda hoje, a cautelar data de março de 1991, a imprensa noticia as contínuas invasões não só no Município do Paranapanema, mas vem se alastrando por todo o Brasil, através de movimentos cada vez mais fortes e organizados. As tensões aumentam e os fazendeiros estão criando milícias particulares, bem armadas, como veiculado amplamente pelos jornais, rádios e televisões, preparando-se, exatamente, para uma disputa mais violenta.

E o que se tem visto é que somente a intervenção dos Governos, principalmente do Governo Federal, vem permitindo a abertura do diálogo entre os fazendeiros ocupantes dos imóveis e os sem-terra, sendo esta mais uma razão favorável ao ajuizamento da cautelar.

Já a possibilidade de danos ao imóvel também é uma realidade. A ocupação, o parcelamento do solo e o desmatamento desordenados comprometem induvidosamente a fauna, a flora, as nascentes d’água, enfim, todas as riquezas naturais existentes no local que, uma vez destruídas, dificilmente poderão ser recuperadas.

A Justiça não pode ficar alheia ao cenário nacional, cheio de sombras nessa área. Reconhecer que a ação do Governo, calcada na lei, com o uso de instrumento processual próprio, assim a cautelar, no caso, não pode ir adiante, por falta do requisito do periculum in mora, a fechar os olhos para a realidade gritante, o que, com todo o maior respeito, não pode prosperar.

Embora reconhecido o requisito do periculum in mora, a pretensão de que a cautelar seja concedida nesta instância não pode ser atendida, pena de se infringir o princípio do duplo grau de jurisdição. É que a sentença julgou extinto o processo por carência de ação, não tendo sequer apreciado a contestação de fls., a qual foi dada como prejudicada pelo despacho de fls.

Assim, violado o artigo 822, I, do Código de Processo Civil, conheço e provejo, em parte, o recurso para determinar o prosseguimento da ação.

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*A Medida Cautelar relativa a este Acórdão foi ajuizada em 1991 pelo Procurador do Estado José Roberto Fernandes de Castilho, Chefe da Procuradoria Regional de Presidente Prudente.