Anna Candida da Cunha Ferraz            revist.GIF (16962 bytes) Sumário


A Autonomia Universitária na Constituição de 05.10.1998

Sumário: I - Introdução II - Considerações gerais: 1. O conceito constitucional de autonomia 2. As várias espécies de autonomia constitucional III - A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988 - A - Aspectos da disciplina constitucional da autonomia universitária: 3. A consagração constitucional da autonomia universitária 4. O artigo 207 quanto à sua natureza e aplicabilidade 5. A inserção constitucional, a decorrente intangibilidade da autonomia universitária e suas conseqüências 6. A amplitude e os limites da autonomia universitária 7. A legislação infraconstitucional e a autonomia universitária 8. A força expansiva da inserção constitucional da autonomia universitária B - A formalização da autonomia universitária 9. O conteúdo material dos diplomas normativos universitários 10. O regime especial das autarquias educacionais 11. A força normativa dos estatutos universitários 12. Os atos normativos universitários e o princípio da legalidade IV - Conclusões

 

I - INTRODUÇÃO

 

Uma significativa inovação da Constituição Brasileira de 5 de outubro de 1988 foi a inserção da autonomia universitária no plano constitucional. Abriga, pois, esta Constituição, ao lado de outras "autonomias", a autonomia universitária. Apercebeu-se o constituinte pátrio, certamente, que o reconhecimento da autonomia universitária pela via legislativa comum, tal como previsto anteriormente, não foi suficiente para que as universidades realmente pudessem cumprir, de modo autônomo e independente, a sua verdadeira, relevante e indispensável finalidade.

Não obstante, neste ano em que se comemorará os dez anos de vigência da nova Constituição, na prática e na vivência democrática, muito pouco se evoluiu no tocante ao reconhecimento do real significado da autonomia constitucional universitária, sua efetiva aplicação e os limites que se lhe podem impor. Há, ainda, um largo espaço, tanto na doutrina como na legislação e na jurisprudência, para o exame dessa questão, fundamental para os destinos da educação superior no País.

Neste trabalho procura-se, à luz da Constituição de 1988, trazer alguma colaboração para o estudo deste tema.

 

II - CONSIDERAÇÕES GERAIS

 

1. O conceito constitucional de autonomia

Não define o texto constitucional o sentido em que toma o termo autonomia, ao qual, não obstante, faz várias referências. Trata-se, pois, de conceito que deve ser haurido na doutrina.

Consiste a autonomia na capacidade de autodeterminação e de autonormação dentro dos limites fixados pelo poder que a institui. "O poder que dita, o poder supremo, aquele acima do qual não haja outro, é a soberania. Só esta determina a si mesma os limites de sua competência. A autonomia não. A autonomia atua dentro de limites que a soberania lhe tenha prescrito". Esta a lição sempre atual de Sampaio Dória 1

Conceituado o termo, cabe registrar, de pronto, que a "autonomia" porquanto "concedida" pelo instituidor, pode por este - e somente por ele - ser definida com maior ou menor amplitude, abrangendo um grau mais ou menos elevado, ou tendo um conteúdo mais ou menos diversificado. Ensina a doutrina que o grau mais elevado de autonomia é característica dos entes que compõem uma federação, grau este que consiste fundamentalmente na autonomia política, compreendida esta como a capacidade de o ente autônomo ter uma Constituição própria, estabelecer seus órgãos de governo, fazer leis, etc.

Da outorga da autonomia pelo constituinte originário na sede normativa da nossa Constituição Federal, uma primeira e indispensável conclusão deve ser registrada: em que pese ser o Brasil uma República Federativa, os contornos da autonomia - conteúdo, amplitude, limitações, ainda que alcancem entidades ou órgãos criados pelos entes federativos, por sua vez, autônomos -, estão delimitados pela própria Constituição Federal; não podem as leis, federais, estaduais ou municipais, e nem mesmo as Constituições dos Estados-membros da Federação Brasileira, suprimir, alterar ou restringir o conteúdo autonômico fixado pelo texto da Lei Maior, seja para interpretá-lo, seja para lhe dar aplicação.

 

2. As várias "espécies" de autonomia constitucional

Ainda outra observação colhe fazer. O Constituinte originário de 1988 concedeu autonomia constitucional a vários entes, em graus diferentes e com conteúdo e limitações diversas. Para exemplificar, a Constituição refere-se ou institui autonomia em seus artigos: 34, VII, "c" , ao mencionar a "autonomia municipal"; 99, ao assegurar ao Poder Judiciário autonomia administrativa e financeira; 127, §2º, ao assegurar ao Ministério Público autonomia funcional e administrativa; 207, ao assegurar às universidades autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial.

Embora não conceitue o termo relativamente a nenhum dos entes que a recebem, a Constituição define o conteúdo de cada qual, e fixa, no próprio texto constitucional, os limites que lhe são impostos, pelo que é possível aferir a amplitude e a extensão das respectivas autonomias.

Com efeito.

 

2.1 - A autonomia municipal

O conteúdo, a amplitude e os limites da autonomia municipal devem ser extraídos dos textos constitucionais, particularmente dos artigos 29, 30 e 34, VII, "c", cujos pontos principais podem ser assim resumidos:

 

2.1.1 - no tocante à amplitude:

a) a autonomia municipal é intocável, mesmo pela Constituição dos Estados-membros dos quais o Município é ente político (art. 34, VII, "c");

b) o Município não tem qualquer vínculo de subordinação com relação aos demais entes políticos, seja o Estado, seja a União;

 

2.1. 2 - no tocante ao conteúdo:

a) o Município goza de autonomia política, detendo seus próprios órgãos de governo (art. 20, I e II);

b) o Município se auto-organiza por intermédio de Lei Orgânica que ele próprio elabora (art. 29);

c) o Município tem autonomia legislativa, tributária, financeira e administrativa (art. 30, dentre outros);

 

2.1. 3 - no tocante aos limites:

Afora outros que podem ser extraídos do texto e do sistema constitucional (como por exemplo, a observância do regime democrático e o respeito aos direitos fundamentais), para o que interessa ressaltar constituem limites à autonomia do Município:

a) à autonomia política: os órgãos do governo municipal são necessariamente os descritos na Constituição Federal, não podendo o Município inovar a esse respeito. O número de vereadores, sua remuneração, etc., estão sujeitos a cláusulas constitucionais limitativas (art. 29);

b) à auto-organização: a Lei Orgânica deve observar, além dos requisitos procedimentais para sua elaboração, os princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Estadual;

c) à auto-administração: a administração pública municipal está sujeita aos princípios que norteiam a administração pública em geral e estabelecidos no art. 37 da Constituição Federal; a criação, organização e supressão de distritos devem observar a legislação estadual (art. 30, IV), etc.

Registre-se, ainda, que para além de tais limitações, expressas na Constituição Federal, não podem as leis federais e nem mesmo as Constituições dos Estados impor outros limites à autonomia municipal.

 

2.2 - A autonomia do Poder Judiciário

O Poder Judiciário é um dos Poderes do Estado, independente e harmônico em relação aos demais, segundo preceitua o artigo 2º da Constituição Federal. Em razão dessa independência tem o Poder Judiciário forçosamente autonomia para o exercício de suas atribuições constitucionais. Não obstante, talvez por razões históricas e pragmáticas, quis o constituinte originário ressaltar a autonomia desse Poder no tocante à sua administração e finanças, consagrando-lhe, portanto, o princípio autonômico cujo conteúdo vem expresso no art. 99: autonomia administrativa e financeira. A amplitude e a extensão dessa autonomia podem ser extraídas, dentre outros, do artigo 96, particularmente dos incisos I e II, alíneas "a, b, c, e, f " e "b, c, e d", respectivamente. Observe-se que, no tocante à sua administração, têm os tribunais competência privativa para, dentre outras atribuições, "elaborar seus regimentos internos", dispor sobre o "funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos", "organizar suas secretarias e serviços auxiliares", "prover, na forma prevista na Constituição, os cargos de juiz". Registre-se que a Constituição não condiciona o exercício dessas atribuições à lei.

Dentre os limites postos à autonomia do Poder Judiciário cabe citar que o Estatuto da Magistratura, ato normativo que disciplina o ingresso na carreira, a promoção dos juizes, etc., este sim deve ser veiculado por lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal (art. 93).

 

2.3 - A autonomia do Ministério Público

Ao Ministério Público é assegurada autonomia, cujo conteúdo expresso na Constituição abrange a autonomia funcional e a autonomia administrativa.

A amplitude desta autonomia pode ser extraída, exemplificativamente, da competência atribuída ao Ministério Público para "propor ao Poder Legislativo" a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas e de provas e títulos e da competência para "elaborar sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias" (§3º do art. 127). Observe-se que o Ministério Público pode propor referido projeto de lei; contudo, o exercício autônomo dessas atribuições depende de lei.

De outro lado, ainda dentre as limitações à autonomia administrativa do Ministério Público, pode-se citar a que remete à lei dispor sobre a organização e o funcionamento da instituição , conforme estabelece o art. 127, §2º, verbis:

 

"Art. 127 - ...

§2º - Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas e de provas e títulos; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento." (n.g.)

 

III - A AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

 

A - ASPECTOS DA DISCIPLINA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA

 

3 - A consagração constitucional da autonomia universitária

A autonomia universitária vem consagrada no Texto de nossa Lei Maior, em seu artigo 207. Coube à Constituição de 5.10.1988 elevar, pioneiramente na história da universidade no Brasil, a autonomia das universidades ao nível de princípio constitucional. Dispõe o artigo 207:

 

"Art. 207 - As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão".

Como se vê, desde logo, nossa Lei Maior preocupa-se em definir o conteúdo da autonomia das universidades, que abrange "a autonomia didático-científica" ou seja, suas atividades-fim e a "autonomia administrativa e financeira", suas atividades-meio.

Quis o constituinte originário, em boa hora, resgatar e compor, em nosso sistema jurídico-constitucional, uma renovada figuração da autonomia das universidades, tão antiga quanto necessária, para que possa ela cumprir sua missão, emprestando-lhes assim o prestígio de se instalar em nossa Lei Maior. Autonomia que é de longa data reconhecida em todo o mundo. Isto mesmo aponta Celso Antônio Bandeira de Mello

 

"16. As universidades, notoriamente, são das mais antigas instituições em que se expressou um sentimento autonômico e de auto-organização. Não há descentralização de atividade especializada alguma que tenha tão forte e vetusta tradição. Em rigor, ela é tão antiga que precede à própria noção de Estado. Lafayette Pondé, em poucas palavras e com o auxílio de uma citação expõe a tradição e o espírito essencial da universidade.

"A noção de Estado, como fonte centralizada e soberana de poder e da ordenação jurídica, não surge senão no Século XVI. O termo "Estado" vem de Maquiavel. Na França, por exemplo, ele somente se fixa ao tempo de Luiz XIII - "Le mot État triomphe au debut du XVII siécle, à l´époque de Louis XIII et de Richilieu" - e a Universidade de Paris já era velha de quatro séculos, e a de Bolonha vinha de 1158, a da Alemanha de 1348, a de Lisboa de 1290.

"Nascida nas catedrais, desenvolvida nos mosteiros, a educação universitária era assunto "espiritual", de que se incumbia a Igreja, dona da mundo civilizado. A cristandade era a civilização, a civilização a cristandade integrada no Sacro Império Romano. A lei emanava da vontade deliberada de um legislador - assembléia ou governante único. O direito era "achado" ou "recolhido" como um aspecto da vida coletiva. Por isto Ortega y Gasset pôde dizer, à comemoração do quarto centenário da universidade de Granada: `La Universidad significó um princípio diferente y originário, aparte, quando frente al Estado. Era el saber constituido como poder social. De aqui que apenas gana sus primeras batallas la universidad se constituya com fuero próprio e originales franquias. Frente ao poder político, que es la fuerza, y la Iglesia, que es el poder transcedente, la magia de la universidad se alzó como genuino y exclusivo y autêntico poder espiritual: era la inteligência como tal, exenta, nuda y por decirlo aí, en persona una energia histórica - La inteligencia como institución´" (ob. e loc. cits. pp. 34 e 35).

"17. Se às pessoas descentralizadas em geral convém uma disciplina jurídica ajustada a suas finalidades e tipo de ação, até parece despiciendo sublinhar a indeclinável necessidade de que as universidades - instituições de cunha tão peculiar e original - sejam regidas por um quadro normativo específico para elas" 2

 

4 - O artigo 207 quanto a sua natureza e aplicabilidade

Uma primeira e relevante observação deve ser extraída do preceituado no artigo 207 e diz respeito à natureza da norma constitucional quanto à sua eficácia e aplicabilidade.

O princípio autonômico assegurado às universidades pelo constituinte originário tem seus contornos definidos em norma auto-aplicável, bastante em si, na lição da doutrina clássica, ou em norma de eficácia plena e de aplicabilidade imediata, na linguagem de José Afonso da Silva3 ou em norma completa, imediatamente exeqüível, na dicção de Manoel Gonçalves Ferreira Filho4, conforme bem observa Nina Ranieri , dentre outros5.

Com efeito. Estabelecendo a norma constitucional a garantia institucional e o conteúdo da autonomia das universidades, não condiciona nem um, nem outro, à lei. Não demanda o texto constitucional lei para aplicar, constituir ou definir tal autonomia.

Parece que vem a calhar a lição de Almiro do Couto e Silva, a seguir transcrita:

 

"Na verdade, ao princípio acolhido no seu art. 207 o nosso Estatuto Político Fundamental não apôs qualquer cláusula restritiva, do tipo "na forma da lei", à semelhança do art. 33 da Constituição Italiana, de modo a fazer do preceito constitucional uma regra de eficácia contida, na classificação de José Afonso da Silva, que tão merecido prestígio conquistou no Direito Brasileiro ("Aplicabilidade das Normas Constitucionais", São Paulo, RT, 1968). Cogita-se por conseqüência, de uma norma de eficácia plena, insuscetível de ter o seu significado e sua extensão diminuídos, ainda que em mínima parte, pela legislação ordinária. Não é que a regra constitucional vede legislação ordinária que lhe explicite, de forma mais minuciosa ou pormenorizada seu sentido, facilitando-lhe a aplicação às situações concretas. O que a norma constitucional sobre autonomia universitária impede terminantemente é que a legislação ordinária, sob pretexto de dar tratamento mais minudente ao preceito superior, acabe por desvirtuá-lo, conferindo-lhe um contorno e uma dimensão que ele não possui".6

Assim, pois, a própria norma constitucional regula inteiramente o assunto, em normatividade acabada e completa. Se criada uma universidade pública, qualquer que seja a esfera política que o faça, terá esta assegurada a autonomia, com os contornos definidos na Constituição Federal. Destarte, a autonomia universitária será exercida nos termos da Constituição e não nos termos da lei.

 

5. A inserção constitucional, a decorrente intangilibidade da autonomia universitária e suas conseqüências

De outro lado, a inserção constitucional da autonomia universitária na obra do constituinte originário, traz como conseqüência a sua intangibilidade por normas de hierarquia inferior: leis federais, leis estaduais e municipais, ou mesmo as Constituições dos Estados ( ainda que obras de um poder constituinte estadual autônomo por força do princípio federativo que preside a organização do Estado no Brasil).

Inscrito na Constituição Federal, o princípio da autonomia universitária tem uma dimensão fundamentadora, integrativa, diretiva e limitativa própria, o que significa dizer que é na própria Constituição Federal : a) que se radica o fundamento do instituto; b) que é dela que se extraí sua força integrativa em todo o sistema federativo do País; c) que a Constituição Federal preordena a interpretação que se possa dar ao instituto; d) que os limites que se podem opor à autonomia universitária tem como sede única a própria Constituição Federal; e) que o princípio da autonomia universitária, como princípio constitucional, deve ser interpretado em harmonia - mas no mesmo nível - com os demais princípios constitucionais.

 

6. A amplitude e as limitações constitucionais à autonomia universitária

Qual a amplitude e quais as limitações constitucionais da autonomia universitária?

A amplitude desta autonomia se define, primeiramente, com fundamento na disciplina constitucional apontada: será ela exercida, nos termos da Constituição e independentemente de previsão ou disciplina de qualquer legislação hierárquica inferior.

Impõe-se, portanto, registrar: onde não houver proibição, vedação ou limitação constitucional, há de imperar o princípio autonômico.

Assim, diferentemente do que ocorre com a Administração Pública direta, que somente pode atuar a partir da lei, o ente autônomo, cuja autonomia é definida na Constituição e não subordinada à lei de modo expresso, atua de modo "autonômico", sendo a "liberdade" ou "autonomia", respeitados os limites constitucionais, o princípio norteador e fundamental para o seu funcionamento.

"Na ausência de textos é o direito de autonomia que prepondera, porque, para a pessoa moral, como para a pessoa física, o princípio é a liberdade. O Estado não pode restringir esta liberdade senão na medida em que autorizado por sua própria lei" (ou, "no caso, observação nossa, pela própria Constituição") , salienta em preciosa observação León Michoud, citado por Hely Lopes Meirelles7.

Discorrendo sobre o tema, esta também a anotação que se pode extrair das ponderações de Ada Pellegrini Grinover em judicioso parecer sobre a "Autonomia universitária e a criação de cursos na área da saúde", ao se referir à liberdade no exercício da autonomia universitária quando inexistem limites validamente fixados:

 

"2. Por mais controvérsias que possa originar a expressão "autonomia universitária", ninguém nega que indique ela autodeterminação e autonormação. Que essas autodeterminação e autonormação não são absolutas, não se discute; ambas existem e são desempenhadas dentro dos limites da lei, e desde que essa lei seja razoável, de modo a não frustar a garantia constitucional. Mas onde a lei não as limita, são plenas".8

As limitações à autonomia universitária devem, pois, ser extraídas do texto constitucional, o que não é tarefa simples.

Por primeiro e por óbvio, impõe-se às universidades a observância de toda e qualquer norma ou princípio constitucional geral ou específico do sistema constitucional construído pela Constituição. Apenas para exemplificar, no tocante à universidades oficiais, impõe-se, à evidência, o respeito aos direitos fundamentais, a observância dos princípios constitucionais que regem a administração pública direta e indireta, contidos no artigo 37. As universidades são apenas entes administrativos autônomos e não podem se sobrepor , por evidente, à ordem soberana que rege o País.

É certo que pode ocorrer, em vários passos, a necessidade de compatibilização entre princípios constitucionais: o da autonomia universitária e outro qualquer. Como não se pode admitir antinomia na Constituição, tal harmonização há de ser feita pela interpretação constitucional harmônica, com os recursos usuais aos princípios interpretativos que conduzem a atuação dos intérpretes constitucionais tais como o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, o princípio finalístico, etc.

Essas são as limitações gerais.

Neste contexto, entretanto, interessa ainda ressaltar as limitações específicas à autonomia universitária, que podem ser extraídas não apenas da disciplina constitucional contida no Capítulo II "Da Educação, da Cultura e do Desporto", inserido no Título VIII que dispõe sobre a "Ordem Social", como de outras normas constitucionais dispostas ao longo do Texto Fundamental.

Tão somente para ilustrar, é possível registrar que, no que concerne à autonomia-fim (autonomia didática e científica), devem as universidades observar, dentre outros, os princípios do próprio artigo 207 (indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão) e os contidos no artigo 206, particularmente os referentes:

- ao pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;

- a gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais;

- a gestão democrática do ensino público, na forma da lei.

- a garantia do padrão de qualidade;

Registre-se, ainda, por oportuno, que em profícuo estudo sobre "A constitucionalização da autonomia universitária", Edivaldo M. Boaventura, Professor Titular da Bahia, examina em profundidade a dimensão constitucional da autonomia universitária e as disposições constitucionais que circunscrevem a interpretação do instituto9, trazendo à colação uma série de princípios, normas e preceitos constitucionais que direta ou indiretamente se relacionam à autonomia universitária. Ainda que se possa fazer divergir de certas ponderações do Autor, trata-se, sem dúvida, de interessante pesquisa feita no texto constitucional de molde a nortear o exame do tema em questão.

 

7. A legislação infraconstitucional e a autonomia universitária

Claro está que a lei poderá estabelecer normas e diretrizes que alcançam as universidades públicas, como aliás explicita Almiro do Couto e Silva, retro citado. Afinal, a universidade pública é ente da administração indireta e não existe por si só, isolada no espaço da jurisdição do País. A sua própria existência depende da vontade política do ente federativo que a cria e essa vontade política sempre se manifesta mediante lei, até por força de preceito constitucional expresso (art. 37, XIX da CF). De outro lado, a universidade integra o sistema de ensino superior, cujas diretrizes nacionais, em termos de finalidade, objetivos, etc., devem ser fixadas em lei (cf. art. 22, XXIV). Destarte a auto-aplicação dos dispositivos constitucionais relativos à autonomia universitária não exclui a disciplina legal complementar ou os desdobramentos legislativos que se façam necessários.

Dentre as leis retro referidas, exemplifique-se, em primeiro lugar, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, prevista dentre as competências constitucionais legislativas privativas da União, no artigo 22, inciso XXIV, da Constituição em vigor. Cumprindo à lei ordenar o desenvolvimento e a efetiva prestação do ensino no País, adequando-os às necessidades nacionais, é evidente que poderá ela estabelecer as regras básicas da organização dos sistemas de ensino superior, inclusive os mantidos pelos entes federativos, ainda que autônomos. Assim, a função dessa lei consiste em estabelecer as linhas mestras da política nacional da organização do sistema de educação no País.

É o que registra Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao comentar o inciso XXIV do artigo 22, em exame:

 

"Diretrizes e bases da educação nacional. Manteve neste passo o preceito de 1967 (Emenda 1/69, art. 8º, XVII, g). Compete à União formular, em lei, as diretrizes e bases da Educação, em todo o Brasil. A competência deferida é, pois, de estabelecer as linhas mestras, fixando princípios gerais, que sirvam de guia para os Estados. Não vai além do arcabouço que há de ser adaptado, como é de bom senso, às condições de cada região"10.

É o que também se pode inferir dos comentários ao mesmo inciso feitos por Pinto Ferreira:

"A análise do presente artigo, aliás, deve ser combinada com a referência feita ao art. 211 do mesmo Diploma, admitindo que os Estados e o Distrito Federal organizem o seu sistema de ensino, ao passo que a União organizará o sistema federal de ensino e o dos territórios."11.

Também as leis próprias dos entes federativos (ou suas Constituições) poderão, por óbvio, conter regras diretivas e básicas para o desenvolvimento do respectivo sistema de ensino superior: a criação da universidade pública, a forma de administração descentralizada que assume, os sistemas de controle e tutela específicos dos entes autárquicos universitários, a fixação do respectivo orçamento da universidade pública, os sistemas de controle ou tutela próprios dos entes autárquicos, dependem de lei; de outro lado, é competência comum dos entes federativos "proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência" (art. 23, incisos V e XI), sendo, ainda, competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre "educação, cultura, ensino e desporto" (art. 24, IX), atribuições estas que demandam atividade legislativa respectiva.

Contudo, o que deve ser registrado e enfatizado é que tais leis não poderão, em nenhum passo, restringir, reduzir, diminuir ou afetar, ainda que de modo indireto, a autonomia universitária, cujos limites, repita-se, estão na Constituição e só dela podem ser extraídos.

 

8. A força expansiva da inserção constitucional da autonomia universitária

Assim, diante das considerações expostas, não tem razão "data venia" aqueles que entendem que a inserção constitucional da autonomia universitária não modificou a figuração do instituto já anteriormente existente por força de lei, salvo para torná-lo irredutível perante a legislação de hierarquia inferior, conforme pontifica o ilustre jurista Saulo Ramos, no erudito parecer n.º SR- 78, de 15.12.1988, citado por todos quantos se debruçam sobre o tema da autonomia universitária12, verbis:

 

"O conteúdo intrínseco desse postulado não se alterou. Da constitucionalização desse princípio, a única conseqüência que se pode extrair é, sem dúvida, a eficácia derrogatória e irrecusável da norma que o contempla, cuja supremacia se impõe à observância necessária do legislador ordinário".

Anteriormente à Constituição Federal em vigor, a autonomia universitária era concessão legal, definida pela lei, com contornos jurídicos - amplitude, conteúdo e limites - fixados pela lei; a aplicação e a interpretação do instituto tinham como parâmetros a lei e a autonomia devia ser exercitada "na forma da lei".

Ante a Constituição em vigor, além da intangibilidade perante a legislação inferior à Constituição, de relevância marcante para a vida do instituto, a inserção constitucional da autonomia universitária acarreta importantes e renovadas conseqüências.

Fixem-se algumas delas:

a) a autonomia constitui uma garantia institucional das universidades e constituindo um "mínimo intangível" representa proteção reforçada contra o arbítrio e a invasão dos entes legislativos inferiores;

b) a interpretação do princípio da autonomia universitária deve ser feita à luz da Constituição Federal; tem este princípio constitucional a mesma força dos demais princípios constitucionais, de tal sorte que todos deverão ser interpretados de modo harmônico, a fim de que o princípio tenha a aplicação mais eficiente e conforme à finalidade para a qual foi instituído;

c) o princípio da autonomia universitária se irradia por todo o sistema e tem uma dimensão fundamentadora, interpretativa, integrativa e diretiva para a aplicação do instituto, seja nos planos legislativo e executivo, de qualquer nível do sistema constitucional brasileiro, seja no tocante à sua aplicação em geral;

d) o exercício e a aplicação da autonomia universitária não estão condicionados à lei; o exercício da autonomia universitária não se faz "na forma da lei". A norma constitucional que abriga o princípio é de eficácia plena, independendo, portanto, de lei para ser aplicada;

e) leis que, de qualquer modo, alcancem as universidades, não podem ter como objetivo ou finalidade conceder ou restringir sua autonomia. Toda e qualquer lei que abrigue normas relativas à universidade, ou a ela se dirijam, deve se conter nos limites da Constituição e dispor sobre a matéria própria da via legislativa de modo "adequado", "razoável" e "proporcional", a fim de não frustar a garantia institucional da autonomia;

f) o conteúdo e os limites à autonomia constitucional são postos pelo constituinte originário na Constituição Federal e somente estes são admissíveis na vida do instituto.

g) a autonomia universitária é exercida dentro dos limites da Constituição; onde a Constituição não estabelece limites, a lei não pode estabelecê-los, também. Assim, onde a Constituição não limita, e a lei também não o faz, porque não pode fazê-lo, a autonomia é plenamente exercitável pela universidade;

h) finalmente, a inclusão, no texto constitucional, do princípio da autonomia universitária como garantia institucional implica a derrogação de toda a legislação ordinária que com ela seja inconciliável.

 

B - A FORMALIZAÇÃO DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA: OS ESTATUTOS E OS REGIMENTOS UNIVERSITÁRIOS

 

Fixados os contornos da autonomia universitária e suas implicações, decorrentes da sua inserção na Lei Maior do País, cabe indagar como se formaliza e como se concretiza, sob o ângulo normativo, essa autonomia.

A autonomia universitária, nas universidades oficiais, tem sua expressão normativa veiculada nos seus Estatutos e Regimentos. Constituem, pois, este diplomas os atos normativos básicos de expressão e manifestação da autonomia universitária, vale dizer, as normas fundamentadoras da vida autônoma da universidade.

9. O conteúdo material dos diplomas normativos universitários

O conteúdo material dos diplomas normativos universitários abrange, assim, o desdobramento da autonomia universitária, em seus múltiplos aspectos, presentemente definidos pelo artigo 207 da Constituição Federal: autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, conforme bem ressalta Caio Tácito:

"A universidade, como recordado, deve nascer, viver e conviver sob o signo da autonomia, que é um conceito multilateral.

"Primordialmente, autonomia científico-pedagógica, porque é da essência da instituição universitária criar, pesquisar, ordenar e transmitir o conhecimento, como elemento fundamental para difundir a educação e fomentar a cultura.

"Esta missão básica da universidade pressupõe, no entanto, a disponibilidade de meios flexíveis e satisfatórios à plenitude da concreção de seus fins.

"Daí a necessidade de estender-se o princípio da autonomia aos meios de operação, consistentes na autonomia administrativa e autonomia disciplinar".13

 

9.1 - A autonomia didática e científica

A autonomia didático-científica constitui atividade-fim da universidade. A autonomia didática, como atividade-fim da universidade relaciona-se, fundamentalmente, com a competência da universidade para definir o conhecimento a ser transmitido, bem como sua forma de transmissão. Nina Ranieri acentua, de modo correto, que "Decorre logicamente desse pressuposto a capacidade de organizar o ensino, a pesquisa e as atividades de extensão, o que envolve:

a) a criação, a modificação e a extinção de cursos (graduação, pós-graduação, extensão universitária);

b) a definição de currículos e a organização dos mesmos, sem quaisquer restrições de natureza filosófica, política ou ideológica, observadas as normas diretivo-basilares que informam a matéria;

c) o estabelecimento de critérios e normas de seleção e admissão de estudantes, inclusive no que concerne a regimes de transferência e adaptação;

d) a determinação da oferta de vagas em seus cursos;

e) o estabelecimento de critérios e normas para avaliação do desempenho dos estudantes;

f) a outorga de títulos correspondentes aos graus de qualificação acadêmica;

g) a possibilidade de experimentar novos currículos e fazer experiências pedagógicas (esta garantida pelo inciso II, do art. 206), etc."14 15

Não menos relevante é a autonomia científica assegurada às universidades. Manifestação inequívoca da própria liberdade de pensamento (em seus vários desdobramentos) e de ensino, a primeira consagrada dentre os direitos fundamentais da pessoa (art. 5º), a segunda assegurada no artigo 206 da Constituição, particularmente em seus incisos II e III, além de garantir a liberdade de investigação e pesquisa nas universidades e a liberdade de desenvolver os processos de conhecimento em sua dimensão global, ainda significa a responsabilidade de as universidades cumprirem o preceituado no artigo 218 da Constituição, especificamente voltado para o dever de o Estado promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica.

Cabe acentuar que a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as linhas mestras e os princípios gerais da educação nacional, implementando determinação da Constituição de 1988, embora de forma minuciosa e muito além dos lindes de princípios e regras gerais, ao explicitar o conteúdo da autonomia universitária não se afasta do sentido acima mencionado, construído pela doutrina e inequivocamente abrigado pela Constituição. Ao menos quanto ao conteúdo básico da autonomia universitária, ainda que dando tratamento minucioso ao preceito constitucional, respeita a amplitude e a extensão da autonomia universitária, consoante se pode inferir do que dispõe, exemplificando, o artigo 53, incisos I a VI e seu parágrafo único.

Dispõe referido artigo 53:

 

"Art. 53 - No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:

I - criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior previstos nesta Lei, obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino;

II - Fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes;

III - estabelecer planos, programas e projetos de pesquisa científica, produção artística e atividades de extensão;

IV - fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio;

V - elaborar e reformar os seus estatutos e regimentos em consonância com as normas gerais pertinentes;

VI - conferir graus, diplomas e outros títulos;

Parágrafo único - Para garantir a autonomia didático-científica das universidades caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis sobre:

I - criação, expansão, modificação e extinção de cursos;

II - ampliação e diminuição de vagas;

III - elaboração de programação dos cursos;

IV - contratação e dispensa de professores;

VI - planos da carreira docente.

 

9.2 - A autonomia de gestão financeira e patrimonial

A autonomia de gestão financeira e patrimonial é, a seu turno, essencial para que a universidade pública possa cumprir suas atividades fins. Consiste ela, essencialmente, na competência de a universidade gerir, administrar e dispor, de modo autônomo, seus recursos financeiros. Revela-se a autonomia financeira assegurada constitucionalmente em duplo aspecto: de um lado, significa dizer que a universidade tem o direito de receber, do ente político que a institui, recursos financeiros necessários e ao menos suficientes para exercer seu fim último; de outro, assinala no sentido de que a universidade disporá desses recursos financeiros - que lhe são próprios de direito - e dos demais recursos financeiros de que vier a dispor por outros meios legalmente admissíveis, gerindo-os e administrando-os de modo autônomo.

Com efeito. Cumprindo ao Poder Público, por força de preceitos expressos na Constituição Federal, criar e manter a universidade, porquanto é seu dever promover e incentivar a educação e assegurar o direito ao ensino (art. 205), promover o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas (art. 218), garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º), forçoso é concluir-se que a atribuição de recursos financeiros à universidade é dever constitucional do ente político que institui uma universidade. Tem esta atribuição evidente caráter instrumental dessa autonomia-meio. Sem recursos próprios, previamente determinados e intocáveis, torna-se irremediavelmente inviável a autonomia financeira. Destarte, uma vez atribuídos tais recursos pelo Poder Público competente, passa a universidade a gerenciá-los de modo autônomo, claro está que para cumprir seus fins e objetivos constitucionais. Em conseqüência, parece lógico admitir-se que tem a universidade "direito" a um orçamento global, como forma de garantir a consecução de seus fins e objetivos. A inexistência dessa fixação global orçamentária impede à universidade definir, de modo autônomo, os critérios de utilização de seus recursos, o que certamente reduz a nada, ou quase nada, a autonomia universitária.

Observe-se que, certamente por assim entender, o Estado de São Paulo, legislou no sentido de proporcionar às universidades paulistas percentual global fixo de recursos orçamentários.16

A Nova Lei de Diretrizes e bases da educação nacional não faz expressa referência a este importante aspecto da autonomia de gestão financeira e patrimonial, que bem poderia figurar como uma norma ou diretriz geral, dirigida aos entes políticos que mantém universidades.

Alguns aspectos relativos ao tema são, não obstante, mencionados no referido diploma legal. Dentre estes se pode destacar, em primeiro lugar, o disposto no artigo 55 que, ao estabelecer que "Caberá à União assegurar, anualmente em seu Orçamento Geral, recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das instituições de educação superior por ela mantidas" reconhece, ao menos para o âmbito da jurisdição da União, o direito de as universidades serem dotadas de um orçamento anual global e o dever de a União assegurá-lo.

Outros aspectos da autonomia de gestão financeira e patrimonial são referidos no art. 53, VIII, IX e X: no art. 54, caput e incisos III, IV, V, VI, VII; no art. 68, 69 e 72. Desses alguns repetem preceitos constitucionais, outros normas legais específicas relativas à matéria.

Em suma, a autonomia de gestão financeira e patrimonial, assegurada pela Constituição, implica o poder-dever de os entes políticos, mantenedores de universidades, de colocarem à disposição destas, todos os recursos necessários para concretizá-la. Constitui omissão inconstitucional a não concessão, a estes entes autônomos, dos recursos de que necessitam para cumprir seus objetivos fundamentais.

 

9.3 - A autonomia administrativa

É, todavia, no campo da autonomia administrativa que mais se tem instalado polêmicas.

De início cabe lembrar que a autonomia administrativa, a ser desenvolvida no Estatuto e no Regimento e demais atos normativos universitários é bastante ampla, observadas por óbvio, as limitações constitucionais e legais quando pertinentes e dantes referidas:

 

"A vigente Constituição Federal atribui às autarquias educacionais (art. 207) a mais ampla autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial" assevera Hely Lopes Meirelles17.(n.g.)

Consiste a autonomia administrativa universitária no poder de autodeterminação e autonormação relativos à organização e funcionamento de seus serviços e patrimônio próprios, inclusive no que diz respeito ao pessoal que deva prestá-los, e à prática de todos os atos de natureza administrativa inerentes a tais atribuições e necessários à sua própria vida e desenvolvimento. Tais poderes deverão ser exercidos sem ingerência de poderes estranhos à universidade ou subordinação hierárquica a outros entes políticos ou administrativos. Consiste, pois, na autonomia de meios para que a universidade possa cumprir sua autonomia de fins.

No que concerne com a disciplina do pessoal docente, a autonomia administrativa abrange o estabelecimento do respectivo quadro, a definição da carreira, os requisitos para o ingresso, a admissão e a nomeação dos docentes e servidores administrativos, a definição do estatuto do pessoal docente, etc.

Toda esta disciplina estatutária e regulamentar deve, é certo, respeitar as normas e os princípios constitucionais e legais pertinentes. O que a "autonomia universitária" permite e impõe é que essa disciplina material seja veiculada pelos atos normativos universitários próprios, independentemente de lei específica para cada universidade. Assim, exemplificando, dispõem os Estatutos e os Regimentos Gerais das Universidades oficiais do Estado de São Paulo. Nesse contexto é que se pode afirmar que o "Estatuto" e o "Regimento Geral" da Universidade constituem sua legislação básica, como expressão de sua dimensão autonômica.

Esse conteúdo material dos Estatutos já de longa data é reconhecido pela doutrina e pela legislação pátrias.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, lembrando os ensinamentos de Bielsa enfatiza:

 

"A respeito do estatuto universitário, é proveitosa a lição de Rafael Bielsa (in Ciencia de la Administración, Buenos Aires, Depalma, 1955, pp. 459 e 460). Diz ele que a organização das universidades deve compreender duas partes, que são precisamente as que formam um status. Daí a sabedoria da lei que lhes atribuiu o direito de ditar seus estatutos, dentro dos limites da lei. Para Bielsa, "os estatutos devem conter duas partes: a) uma sobre a entidade mesma, como sujeito de direitos... b) outra sobre os professores, ou seja, o conjunto de direitos e deveres - pois isto é o estatuto - que eles têm na qualidade de docentes e segundo sua respectiva categoria" 18.

Aliás, a antiga Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Superior - a Lei n.º 5.540, de 28.11.1968 - vigente à época da promulgação da Constituição de 05.10.1988, diploma legal então instituidor da autonomia universitária, recepcionado pela nova Constituição e vigente até o momento da edição da nova LDB acima referida, seguia tal orientação, ao dispor:

 

"Art. 3º - As universidades gozarão de autonomia didático-científica, disciplinar, administrativa e financeira, que será exercida na forma da lei e dos seus estatutos".

"Art. 5º - A organização e o funcionamento das universidades serão disciplinados em estatutos e em regimentos das unidades que as constituem, os quais serão submetidos à aprovação do Conselho de Educação competente".

"Art. 31 - O regime jurídico do magistério superior será regulado pela legislação própria dos sistemas de ensino e pelos estatutos e regimentos das universidades, das federações de escolas e dos estabelecimentos isolados"

Como se vê, cuidava já esta Lei de enfatizar a força normativa dos estatutos e regimentos universitários e de definir o conteúdo básico da autonomia universitária, particularmente o da autonomia administrativa, inclusive no tocante ao estatuto do pessoal docente.

A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), que, por óbvio não poderia dispor de modo diferente do que aquele estabelecido na Constituição que complementa, mantém, em suas linhas gerais, as diretrizes da legislação infraconstitucional anterior ( que, sob este aspecto, não contrariam a Constituição de 1988, pelo que, como se viu, foram suas normas recepcionadas e mantidas até a nova LDB).

Assim, no que concerne com a autonomia administrativa, seja no que se refere à força normativa dos Estatutos e Regimentos universitários (art. 53, V), seja no que diz respeito ao pessoal docente (art. 53, V e parágrafo único, V e VI e art. 54, caput, I, e II) a nova LDB reafirma a força normativa dos Estatutos universitários e a competência de as universidades disporem sobre seu quadro docente, planos de carreira, etc. Dispõem referidos textos:

 

"Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:

V - elaborar e reformar os seus estatutos e regimentos em consonância com as normas gerais atinentes"...

Parágrafo único - Para garantir a autonomia didático-científica das universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre:

V - contratação e dispensa de professores.

VI - planos de carreira docente.

"Art. 54 - As universidades mantidas pelo Poder Público gozarão, na forma da lei, de estatuto jurídico especial para atender às peculiaridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo Poder Público, assim como dos seus planos de carreira e do regime jurídico do seu pessoal. (n.g.)

§1º - No exercício da sua autonomia, além das atribuições asseguradas pelo artigo anterior, as universidades públicas poderão:

I - propor o seu quadro de pessoal docente, técnico e administrativo, assim como um plano de cargos e salários, atendidas as normas gerais pertinentes e os recursos disponíveis;

II - elaborar o regulamento de seu pessoal em conformidade com as normas gerais concernentes;"

Assim, podem as universidades elaborar seu Estatuto de pessoal docente, observando o regime jurídico "especial" ditado pela própria Constituição . 19

10. O regime especial das autarquias educacionais

Registre-se que a nova LDB não faz referência expressa ao chamado "regime especial das autarquias educacionais" constituído pela antiga LDB. Não obstante, decorre claramente do caput do artigo 54, retro transcrito, a sujeição das entidades universitárias públicas a um "regime especial" ou a um "estatuto especial", cujo sentido não discrepará daquele previsto como "regime especial" A natureza especial desse regime decorre mesmo do fato de que as universidades, detendo autonomia constitucional, devem ter configuração jurídica diferente de quaisquer outros entes públicos da administração indireta, não dotadas de semelhante prerrogativa. Assim, tudo quanto se escreveu sobre o chamado "regime especial" das entidades autárquicas educacionais ainda tem plena aplicação.

Vejamos. A Lei de diretrizes e bases da organização universitária do País, vigente sob a égide da Constituição anterior, para assegurar efetiva concretização da autonomia universitária por ela instituída e a fim de lograr seu respeito pelos entes políticos que criassem universidades públicas, definiu a forma de organização autárquica que essas universidades oficiais deveriam assumir. Quis a lei com isto demonstrar que a autonomia universitária não seria idêntica à autonomia autárquica dos demais entes administrativos autárquicos, mas seria uma autonomia especial, construída com fundamento na legislação federal de ensino, com um conteúdo finalístico próprio, e por isto mesmo a ser exercitada por intermédio de "estatutos" e "regimentos" elaborados pelas próprias universidades. Assim, se as demais entidades autárquicas existentes no País, ainda que dotadas de autonomia prevista em lei, pudessem ter seus estatutos aprovados por qualquer autoridade administrativa, tal não poderia ocorrer com as autarquias universitárias, cujos estatutos deveriam ser por elas mesmas elaborados e aprovados nos termos da legislação federal. Bem por isto, a legislação federal do ensino superior determinou tivessem as autarquias educacionais um regime especial, do qual uma das características básicas residia exatamente no exercício da autonomia na forma prevista nos estatutos e diplomas normativos elaborados pela própria instituição.

Com efeito, a Lei 5.540, de 28.11.1968 assim estabelecia:

 

"Art. 4º - As universidades e os estabelecimentos de ensino superior isolados constituir-se-ão, quando oficiais, em autarquias de regime especial ou em fundações de direito público e, quando particulares, sob a forma de fundações ou associações.

Parágrafo único - O regime especial previsto obedecerá às peculiaridades indicadas nesta Lei, inclusive quanto ao pessoal docente de nível superior, ao qual não se aplica o disposto no Artigo 35 do Decreto-lei n.º 81, de 21.12.1966" (n. g.).

È certo que muito se escreveu e polemizou sobre o significado e alcance do "regime especial" das autarquias educacionais.

Hely Lopes Meirelles, dentre outros ilustres administrativistas, constitucionalistas e educadores, no Parecer já citado, cuidou detidamente do tema, examinando-o, com a proficiência habitual, com relação às universidades federais: mutatis mutandis, as observações são pertinentes, com as devidas adaptações, às universidades estaduais. Convém, bem por isso, com a devida vênia, transcrever parte do pronunciamento do festejado Mestre, precisamente em seus comentários ao artigo 4º, da Lei 5.540/48:

"10. Como se vê, o legislador não definiu o conteúdo da autarquia de regime especial, limitando-se a dizer que as universidades constituir-se-ão com aquela natureza jurídica. Diante da ausência legal de conceito é de dizer-se que autarquia de regime especial é toda aquela a que a lei instituidora conferir privilégios específicos e aumentar a sua autonomia comparativamente com as autarquias comuns, sem infringir os preceitos constitucionais pertinentes a essas entidades de personalidade pública."...

"11. A supracitada Lei 5.540/68 conferiu autonomia didático-científica, disciplinar, administrativa e financeira às universidades, desligando-as, portanto, de qualquer subordinação à Administração centralizada, muito embora, aquela lei, tenha, ad cautelam, normas peculiares de regência das autarquias especiais, ou, no caso específico, das autarquias educacionais.

"Porém, em face da situação, indagar-se-ia: em que consiste o regime especial das autarquias educacionais, que são as universidades?

"A resposta está exatamente na mencionada Lei 5.540/68, a partir de seu art. 5º, a saber: a) organização e funcionamento disciplinados em estatutos e em regimentos das unidades que a constituem; b) as características elencadas no art. 11; c) a nomeação de reitores e vice-reitores e diretores e vice-diretores, com observância do inc. I do art. 16; d) o regime do magistério regulado pela legislação própria dos sistemas e pelos estatutos ou regimentos das universidades; e) o regime jurídico dos servidores previsto na legislação específica de cada sistema administrativo, podendo ser adotado o regime da Consolidação das Leis do Trabalho; f) supervisão do Conselho Federal de Educação, que suspenderá o funcionamento de qualquer universidade, por motivo de infringência da legislação do ensino ou de preceito estatutário ou regimental, ato este homologado pelo Ministro da Educação.

"12. São esses, pois, alguns dos traços mais diferenciadores da autarquia de regime especial das autarquias em geral.

"A Procuradora do Estado de São Paulo, Dra. Anna Cândida da Cunha Ferraz, dissertando sobre o tema, diz:

"É, pois, especial o regime das autarquias educacionais porque estão estas autarquias submetidas a normas de organização, administração, controle ou tutela administrativa, regime de pessoal, matéria recursal, etc., próprios, comuns entre as autarquias do gênero, diferentes das autarquias de outros tipos.

"Assim, por força do direito positivo vigente, pode-se concluir que as autarquias educacionais - universidades e estabelecimentos isolados - por força da submissão ao "regime especial", instituído pela Lei 5.540/68, apresentam as seguintes características:

"I - subordinação ao regime jurídico de direito administrativo, e como tal, aos princípios que informam este direito;

"II - subordinação a um regime jurídico que, embora de direito administrativo, é especial, porque apresenta peculiaridades próprias essenciais e comuns a todas as autarquias do gênero, e só a elas, qualquer que seja o sistema administrativo que lhes tenha dado vida, seja federal, estadual ou municipal" (Cf. Anna Candida da Cunha Ferraz, "O Regime Especial das Autarquias Educacionais", In Rev. Proc. Ger. Est. S. Paulo, 17/201).

"13. Em síntese, pode se dizer que a autarquia de regime especial, como soem ser as universidades educacionais, já na vigência da Lei 5.540/68, só estão submetidas a um controle finalístico pelo Conselho Federal de Educação, com a aprovação do Ministro de Estado da Educação. Afora isso, regem-se, na sua plenitude, pelos seus estatutos e regimentos próprios de cada unidade."20

Maria Sylvia Zanella Di Pietro também teve a oportunidade de acentuar a importância do reconhecimento à universidade do regime especial ao escrever:

"É de realçar o fato de que o status da universidade, a que se refere Bielsa, justificou, no Direito brasileiro, o reconhecimento às universidades, da natureza de autarquias de regime especial, o que foi feito por lei."21

Tal expressão legal atendeu, assim, ao objetivo de subtrair as autarquias educacionais de ensino superior, tendo em vista a sua natureza e os seus fins, às normas impostas por legislação geral ou especial que venham a regular as autarquias no País, qualquer que seja o sistema administrativo competente; daí porque dentre as peculiaridades das autarquias educacionais se insere o terem sua organização disciplinada em Estatutos e Regimentos, aprovados, à época, pelos órgãos normativos dos sistemas de ensino seus mantenedores, isto é, pelos Conselhos de Educação.

Os mesmos fins e a mesma motivação levam à constatação que, também sob a nova Constituição e forçosamente perante a nova Lei de Diretrizes e Bases, devem as universidades serem dotadas de um "regime especial" que, em decorrência de sua autonomia constitucional, as distingue de outros entes descentralizados do Poder Público.22 23

 

 

11. A força normativa dos estatutos universitários

Ora, a inclusão, na Constituição Federal, do princípio da autonomia universitária em seu artigo 207, conferindo proteção reforçada ao instituto, reafirma a força normativa dos estatutos e dos regimentos universitários, cujo fundamento, agora, já não deriva apenas da lei, mas decorre do próprio ordenamento jurídico-constitucional.

Isto mesmo ressalta Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

 

"E nesse aspecto, mais uma vez, assume fundamental importância o princípio da autonomia universitária, previsto desde a instituição da universidade no Brasil, pelo Decreto 19.851, de 11.4.31, mantido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 4.024, de 20.12.61) e, depois, pela Lei 5.540. de 28.11.68, sendo agora alçado a nível constitucional. Significa isto que a Constituição incorporou o princípio da autonomia didático-científica, disciplinar, administrativa e financeira, que estava expresso nas leis citadas. Se aparentemente nada mudou, porque a Constituição repete norma que já existia na legislação ordinária, na realidade, a inclusão da norma na própria Constituição teve considerável alcance, porque significa colocar o princípio na mesma hierarquia de outros princípios constitucionais, em relação aos quais deixa de estar subordinado para colocar-se no mesmo nível. Além disso, significa incorporar, com a mesma extensão - o princípio tal qual estava disciplinado pela legislação ordinária: significa também, que se deu a recepção da legislação anteriormente em vigor, em tudo o que não contrarie preceitos constitucionais".24

Bem por isto, a Constituição do Estado de São Paulo, de 05.10.1989, em vigor, como não poderia deixar de ser, acentua a força normativa dos Estatutos universitários, prevista na legislação federal pertinente, ao dispor, em seu artigo 254 (único dispositivo, aliás, em que faz referência à autonomia das universidades):

 

"Art. 254 - A autonomia da universidade será exercida, respeitando, nos termos do seu estatuto, a necessária democratização do ensino e a responsabilidade pública da instituição, observados os seguintes princípios:

I - utilização dos recursos de forma a ampliar o atendimento à demanda social, tanto mediante cursos regulares, quanto atividades de extensão;

II - representação e participação de todos os segmentos da comunidade interna nos órgãos decisórios e na escolha de dirigentes, na forma de seus estatutos;

Parágrafo único: A lei criará formas de participação da sociedade, por meio de instâncias externas à universidade, na avaliação, do desempenho da gestão dos recursos."

De resto, a nova LDB, como se viu, enfatiza a autonomia normativa das universidades (cf. art. 53,V e 54 retro transcritos).

Em suma, os Estatutos e os Regimentos universitários, elaborados pela própria instituição universitária, por força dos comandos constitucionais vigentes, constituem legítima expressão da autonomia universitária, consagrada como garantia institucional em nossa Lei Maior. O conteúdo desta autonomia, definido na Constituição, tem a extensão e dimensão que a legislação recepcionada pela Constituição lhe atribui.

 

 

12. Os atos normativos universitários e o princípio da legalidade

Registre-se, neste passo, que, via de regra, a espécie de ato normativo adotada pelas Universidades para a aprovação dos respectivos "estatutos" ou "regimentos" gerais e, bem assim, para veicular decisões do Conselho Universitário (CO), órgão de decisão máxima nas universidades, tem sido, por força de lei e opção dos próprios Estatutos a "Resolução". Em outras palavras, a formalização dos Estatutos e demais atos normativos universitários é veiculada por intermédio de uma "Resolução", em regra aprovada pelo Conselho Universitário e expedida pelo Reitor da Instituição.

Apenas para exemplificar, recorde-se que a USP dispõe de Estatuto próprio, baixado pela Resolução n.º 3.461, de 7/10/1988, assim como de um Regimento Geral também baixado por Resolução - a Resolução n.º 3.745, de 19/10/1990, expedida pelo Reitor tendo em vista o deliberado pelo seu Conselho Universitário e publicada no D.O de 23 de outubro de 1990: ambos contém, além das normas de organização da instituição, normas atinentes à carreira docente, condições a serem observadas para provimento dos cargos de carreira, etc.25

Assim, as Resoluções que aprovam os Estatutos universitários, ou eles mesmos, pela forma e pela matéria, conformam-se com o princípio da legalidade.

De um lado, porquanto, conforme se demonstrou, tais diplomas normativos consubstanciam o exercício da autonomia universitária, na forma prevista pela Constituição e também assegurada pela lei.

De outro lado, porque no sistema constitucional brasileiro, o princípio da legalidade não se esgota e nem se resume à lei formal. É certo que o princípio da legalidade é nota essencial do Estado de Direito. Está consagrado no artigo 5º, II, da Constituição e é repetido no seu artigo 37, que o integra dentre os princípios aos quais está sujeita a Administração Pública direta ou indireta, de qualquer esfera de Poder no País.

A idéia matriz do princípio está em que somente a lei, ato típico do Poder Legislativo, pode criar regras que contenham inovação na ordem jurídica do País, regras que constituam direitos e imponham obrigações. Daí porque se entende que a palavra "lei", para a realização plena do princípio da legalidade, se aplica, em rigor técnico à "lei formal", isto é, ao ato legislativo emanado dos órgãos de representação popular e elaborado conforme o processo legislativo previsto na Constituição. É correto e próprio afirmar, portanto, que onde a Constituição estabelece o princípio da reserva legal absoluta somente a lei formal, ato típico do Poder Legislativo, pode validamente dispor ou desdobrar matérias contidas em normas constitucionais.

Contudo, não se pode deixar de reconhecer que a Constituição Brasileira admite a edição de normas primárias integradoras ou concretizadoras de preceito constitucional, normas que não são leis, no sentido formal, mas que constituem leis em sentido material. Assim, por exemplo, o "Decreto Legislativo", ato expedido para a concretização do exercício das competências privativas do Congresso Nacional; as "Resoluções" congressuais, expedidas pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, que aprovam os respectivos regimentos internos (atos normativos gerais e primários que, embora não tenham a forma da lei, constituem "lei no sentido material") ; ou ainda os Regimentos Internos do Supremo Tribunal e de outros Tribunais. Tais diplomas normativos atuam validamente quando desdobram a matéria que a Constituição lhes atribui e, sob este aspecto, também satisfazem o princípio da legalidade, ainda que não se apresentem como "lei formal".

Ora, como se viu, o exercício da autonomia universitária não foi condicionado à lei, mas decorre diretamente da Constituição. Toda a disciplina constitucional (e legal pertinente) sinaliza no sentido de que a autonomia universitária se expressa normativamente em atos de elaboração própria, como são seus estatutos e regimentos. A matéria a ser estabelecida nos Estatutos e Regulamentos, observados os limites constitucionais e legais pertinentes, decorre de sua múltipla autonomia. Assim, se os Estatutos e Regimentos são formalizados mediante Resolução (ou qualquer outro ato administrativo designado pelos Estatutos e Regimentos), tal Resolução, como ato formal, e os Estatutos e Regimentos das Universidades - com seu conteúdo material predeterminado constitucionalmente - satisfazem, sob o aspecto formal e material, o princípio da legalidade.

A propósito, Nina Ranieri, citando Santi Romano, observa:

 

"O caráter intrínseco da autonomia reside no fato objetivo de formação de um dado ordenamento que se mostra simultaneamente independente e dependente do ordenamento que lhe deu causa, e que nesta condição é por ele reconhecido".

"Nessa linha de pensamento é de se concluir que a autonomia constitucionalmente atribuída à universidade não só lhe confere o poder de autodeterminação - dentro dos limites já indicados pela Constituição - como também a individualiza como instituição auto-organizada. Por essas razões as normas que edita são lícitas e imperativas em sua órbita de incidência".

"Revestidas de tais atributos (e desde que emitidas validamente) as normas universitárias integram a ordem jurídica como preceitos de valor idêntico ao da lei formal na escala de suas fontes formais, e de idêntica hierarquia em relação às demais normas, gerais e especiais, que promulgadas com base no art. 24, IX da Constituição Federal, disponham sobre matéria de cunho didático-científico, administrativo e de gestão financeira patrimonial, e cujo sujeito passivo sejam as universidades."

"Decorre dessa dupla condição não hierárquica importante conseqüência jurídica: a prevalência das decisões legais da universidade sobre normas exógenas de igual valor, no que respeita a seu peculiar interesse" e, mais adiante acrescenta:

"Esse talvez seja o desdobramento mais significativo da autonomia universitária. A Universidade é uma entidade normativa. Produz direito; suas normas integram a ordem jurídica porque assim determinou a norma fundamental do sistema".

"Como contrapartida, a outorga constitucional exige que tais normas estejam voltadas à otimização dos fins da universidade - ensino, pesquisa, extensão - garantindo a utilização eficiente de recursos humanos e materiais.

"Esse o conteúdo que deve orientar a autonomia administrativa" 26.

Destarte, quando um Estatuto, um Regimento ou uma Resolução são expedidos pela Universidade para concretizar o exercício de sua autonomia, desdobrando matérias de sua competência, tais atos se conformam com o princípio da legalidade. Vale lembrar a profícua lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

"Nenhum órgão, ou agente do Estado, por mais alta que seja a sua hierarquia, detém qualquer poder senão o que advém da Constituição, e o tem de exercer rigorosamente pelo modo nesta definido".

Assim, a Universidade, quando estabelece o seu Estatuto e nele desdobra sua autonomia universitária, usa estritamente o poder que lhe advém da Constituição.

De outro lado parece relevante acentuar que a Universidade, ao exercitar sua autonomia, não age por delegação. Na verdade, a autonomia universitária decorre de assento constitucional e as universidades a exercem por direito próprio. A autonomia constitucional, atribuída às autarquias universitárias, pessoas jurídicas de direito público interno, confere-lhes, para a consecução de seus fins, uma parcela de poder normativo próprio, via do qual podem elas, validamente, estabelecer regras de conteúdo jurídico inovador, observados, tão somente, os limites constitucionais e legais pertinentes. Assim, os Estatutos Universitários, aprovados mediante Resolução dos órgãos universitários competentes, não constituem atos delegados do Poder Público, mas atos normativos universitários próprios, que concretizam e formalizam a autonomia universitária.

Em suma, o Estatuto e o Regimento Geral da Universidade, formalizados usualmente mediante Resoluções expedidas pelos órgãos universitários competentes, são os diplomas normativos, que por força de preceitos constitucionais e legais concretizam o exercício e o conteúdo da autonomia universitária.

IV - CONCLUSÕES

 

Apenas para arrematar, retomem-se os seguintes pontos fixados:

1. A consagração da autonomia universitária no plano constitucional, além de constituir significativa inovação na vida do instituto, importa uma renovada figuração jurídico-constitucional do mesmo. Isto significa dizer que:

a) a autonomia constitui uma garantia institucional das universidades e constituindo um "mínimo intangível" representa proteção reforçada contra o arbítrio e a invasão dos entes legislativos inferiores;

b) a interpretação do princípio da autonomia universitária deve ser feita à luz da Constituição Federal; tem este princípio constitucional a mesma força dos demais princípios constitucionais, de tal sorte que todos deverão ser interpretados de modo harmônico, a fim de que o princípio tenha a aplicação mais eficiente e conforme à finalidade para a qual foi instituído;

c) o princípio da autonomia universitária se irradia por todo o sistema e tem uma dimensão fundamentadora, interpretativa, integrativa e diretiva para a aplicação do instituto, seja nos planos legislativo e executivo, de qualquer nível do sistema constitucional brasileiro, seja no tocante à sua aplicação em geral;

d) o exercício e a aplicação da autonomia universitária não estão condicionados à lei; o exercício da autonomia universitária não se faz "na forma da lei". A norma constitucional que abriga o princípio é de eficácia plena, independendo, portanto, de lei para ser aplicada;

e) leis que, de qualquer modo, alcancem as universidades, não podem ter como objetivo ou finalidade conceder ou restringir sua autonomia. Toda e qualquer lei que abrigue normas relativas à universidade, ou a ela se dirijam, deve se conter nos limites da Constituição e dispor sobre a matéria própria da via legislativa de modo "adequado", "razoável" e "proporcional", a fim de não frustar a garantia institucional da autonomia;

f) o conteúdo e os limites à autonomia constitucional são postos pelo constituinte originário na Constituição Federal e somente estes são admissíveis na vida do instituto;

g) a autonomia universitária é exercida dentro dos limites da Constituição; onde a Constituição não estabelece limites, a lei não pode estabelecê-los, também. Assim, onde a Constituição não limita, e a lei também não o faz, porque não pode fazê-lo, a autonomia é plenamente exercitável pela universidade;

h) finalmente, a inclusão, no texto constitucional, do princípio da autonomia universitária como garantia institucional implica a derrogação de toda a legislação ordinária que com ela seja inconciliável.

2. A autonomia universitária tem sua expressão normativa veiculada nos seus Estatutos e Regimentos, usualmente formalizados mediante uma Resolução. Constituem tais diplomas os atos normativos básicos da expressão e manifestação da autonomia universitária, ou seja, as normas fundamentadoras da vida autônoma da universidade. Bem por isto somente podem ser por ela própria elaborados.

3. O conteúdo material dos diplomas normativos universitários básicos abrange todo o desdobramento da autonomia universitária, nos seus múltiplos aspectos: autonomia didático-científica, autonomia administrativa e autonomia de gestão financeira e patrimonial.

4. A força normativa dos diplomas universitários deriva da Constituição de 5/10/1988 e da autonomia que esta confere à universidade.

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