TESE 5 1ª COMISSÃO
RATINHO LIVRE?
CENSURA, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 88
SERGIO GARDENGHI SUIAMA
Procurador do Estado de São Paulo e Professor de Direito Constitucional
"A dignidade do ser humano é inviolável.
Respeitá-la e protegê-la é dever de todos os poderes públicos."
(Constituição alemã, art. 1º)
A atual onda de programas televisivos sensacionalistas - dentre eles o paradigmático "Ratinho" - provocou o debate sobre os limites da liberdade de imprensa e expressão. É certo que o problema não é novo; tivemos o "Povo na TV" e não faz muito tempo o telejornal "Aqui, Agora", sucesso nacional por mostrar cenas de suicídio e condenar acusados, antes mesmo da instauração do inquérito. A cada novo programa, contudo, parece que a televisão brasileira despenca vários pontos nos índices de degradação ética, exibindo cenas de desrespeito explícito a direitos fundamentais da pessoa humana, com a única finalidade de obter mais espectadores e anunciantes.
Afinal, quais os limites do direito de se expressar? Como se resolve o conflito entre essa liberdade e outros direitos fundamentais da pessoa? Considerando que a Constituição de 88, em dois dispositivos distintos (arts. 5º, IX, e 220, § 2º), veda "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística", é admissível o Estado impedir a divulgação pelos meios de comunicação de fatos ou idéias que contrariem direitos fundamentais? Veja que não se trata aqui de restringir a liberdade de expressão e de imprensa em nome da "segurança nacional" ou dos "bons costumes", prática costumeira dos regimes autoritários. O problema que nos deparamos é o de como impedir a afronta cotidiana, pelos meios de comunicação (sobretudo a TV), de direitos essenciais para a realização da dignidade humana, como são o direito à privacidade, a proteção contra a discriminação e o princípio da presunção de inocência.
O tema - a colisão de direitos fundamentais - é certamente um dos mais difíceis e apaixonantes do direito constitucional, por exigir do intérprete a difícil tarefa de harmonização de valores em conflito primordiais para o ser humano. Nosso objetivo com o presente trabalho é modestamente contribuir para o debate atual, oferecendo elementos para a elucidação desse intrincado problema. Para tanto, de início, examinaremos a distinção entre regras e princípios jurídicos. Apesar do assunto não ser desconhecido da dogmática constitucional1 , pensamos ser necessário abordá-lo, ainda que de forma resumida, em razão da importância do tema para a solução do problema. Em seguida, analisaremos as normas constitucionais que tratam da liberdade de expressão e de imprensa, e as limitações admitidas a esses direitos. Finalmente, investigaremos como a Constituição resolve a colisão entre essas liberdades e outros direitos fundamentais.
I
As normas jurídicas, e dentre elas as normas de direitos fundamentais, dividem-se em princípios e regras. Princípios são as normas jurídicas de natureza lógica anterior e superior às regras e que servem de base para a criação, aplicação e interpretação do direito. Na sempre precisa conceituação de Celso Antônio Bandeira de Mello, princípio é o "mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico."2
As regras, por sua vez, são normas jurídicas destinadas a dar concreção aos princípios. A regra contida no art. 1.595, inciso I, do Código Civil, por exemplo ("São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários que houverem sido autores ou cúmplices em crime de homicídio voluntário, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar"), representa uma das muitas manifestações positivadas do conhecido princípio de que "ninguém pode se aproveitar de sua própria torpeza".
De acordo com Dworkin3 , dois são os critérios que permitem apartar os princípios das regras. O primeiro deles é de ordem lógica: as regras são aplicadas de forma disjuntiva, ou seja, ocorrendo a hipótese de incidência e sendo a norma válida, a conseqüência jurídica deve necessariamente ocorrer. Os princípios, por seu turno, não são automaticamente aplicados, comportando inúmeras exceções não previstas pela própria norma. É o caso, em nosso direito, por exemplo, da regra prevista no art. 550 do Código Civil, que, ao permitir a aquisição da propriedade imóvel por usucapião "independentemente de justo título e boa fé", excepciona o princípio de que "ninguém pode se aproveitar de sua própria torpeza".
O segundo critério pelo qual podemos distinguir regras e princípios é de natureza axiológica. Os princípios possuem uma "dimensão de peso", valorativa, ausente nas regras. Desse modo, ocorrendo o conflito entre dois ou mais princípios em um determinado caso, deve o intérprete considerar o peso relativo de cada um deles e verificar, naquele caso concreto, qual deve prevalecer, afastando o princípio incompatível. Situação diferente ocorre com as regras. Havendo conflito entre duas regras - o que Bobbio denomina de "antinomia própria"4 - uma delas será inválida e deverá ser excluída do sistema jurídico. Nessa hipótese, os critérios para a solução da antinomia são de ordem técnica (lex posterior derogat priori, lex superior derogat inferioris, lex specialis derogat generali), não demandando ao aplicador do direito nenhum juízo valorativo.
Observa ainda Dworkin que, no caso de conflito entre princípios não há propriamente uma discricionariedade do intérprete em definir qual deles deve prevalecer. Essa determinação resulta, na expressão do constitucionalismo alemão5 , de um "juízo de ponderação" (abwägung) entre os diversos valores jurídicos envolvidos, segundo critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
Boa parte das normas de direitos fundamentais são compostas por princípios. Igualdade, privacidade, função social da propriedade, liberdade de consciência, saúde, trabalho, meio ambiente, dentre outros direitos, constituem, antes de tudo, princípios orientadores de todo o ordenamento jurídico, devendo, pois, ser necessariamente considerados pelo aplicador do direito.
II
A faculdade do indivíduo exprimir, sem impedimentos, suas idéias e opiniões foi posta como um valor fundamental pelo pensamento iluminista. No conhecido artigo de Kant sobre o movimento, a liberdade de fazer uso público da própria razão perante a totalidade do público do mundo de leitores ("a mais inofensiva das liberdades", acrescenta o grande filósofo de Königsberg) é condição para que o homem saia de seu estado de minoridade, caracterizado pela incapacidade de servir-se do próprio entendimento, sem a direção de um outro6 .
Seguindo essa orientação, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 estatuiu em seu art. 11: "La libre communication des pensées et des opinions est un des droits les plus précieux de l’homme; tout citoyen peut donc parler, écrire et imprimer librement, sauf à répondre de l’abus de cette liberté dans les cas déterminés par la Loi".
Como aponta Celso Lafer, a proteção à liberdade de opinião e expressão destina-se precipuamente a permitir uma adequada, autônoma e igualitária participação dos indivíduos na esfera pública7 . Daí ser essa liberdade um dos pilares de nosso Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º), posto que este pressupõe uma situação de pluralismo político (art. 1º, inciso V), em que todos os cidadãos têm a possibilidade de formar suas idéias e de as exprimirem sem impedimentos.
Não por outro motivo, vem a liberdade de expressão declarada em todos os grandes documentos internacionais de direitos humanos de nosso século, a começar pela própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. XIX ("Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras").
Elaborada em um contexto de redemocratização da sociedade brasileira, após mais de duas décadas de regime de exceção, a Constituição de 88 protege de forma especial o direito fundamental do indivíduo de informar e expor suas idéias. Assim, no art. 5º, inciso IV, é declarada a liberdade de manifestação do pensamento, "sendo vedado o anonimato". No inciso IX do mesmo artigo a declaração é reiterada e explicitada: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença." Ainda no art. 5º, inciso XIV, assegura-se a todos o acesso à informação, "resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional".
Mais adiante, no Título VIII, há um capítulo inteiro dedicado à comunicação social, com destaque para as seguintes normas:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º. Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º. É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
§ 3º. Compete à lei federal:
I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;
II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente;
§ 4º. A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
(...) Omissis.
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Da leitura destes dispositivos, podemos distinguir dois direitos distintos protegidos pela Constituição, ambos organizados sob a forma de princípios: a liberdade de expressão e a liberdade de informação jornalística. Na lição de José Afonso da Silva, esta última "alcança qualquer forma de difusão de notícias, comentários ou opiniões por qualquer veículo de comunicação social"8 . Por informação - esclarece Albino Greco - se entende "o conhecimento de fatos, de acontecimentos, de situações de interesse geral e particular que implica, do ponto de vista jurídico, duas direções: a do direito de informar e a do direito de ser informado."9
A liberdade de informação jornalística somente admite aquelas restrições estabelecidas diretamente pela Constituição (o que Canotilho denomina de "restrições constitucionais imediatas"10 ), posto que, nos termos do art. 220, § 1º, "nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social. Também nos termos do citado parágrafo, as restrições admitidas à liberdade de informação são aquelas necessárias à preservação dos princípios constitucionais de proteção à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (art. 5º, X). Isto porque, como ressalta Celso Lafer, o direito à informação exata e honesta é um ingrediente do juízo indispensável para a preservação da esfera pública, enquanto algo comum e visível11 , sendo vedado à imprensa, portanto, ingressar na esfera privada do indivíduo. Esta, deve permanecer oculta, não por seu conteúdo ser vergonhoso ou imoral, mas porque sua transposição para a esfera pública importa na banalização dos sentimentos da pessoa. Na dicção do Tribunal de Justiça de São Paulo, por seu desembargador Walter Moraes: "Os fatos depressivos da vida estritamente privada do cidadão não devem ser propalados, ainda que verdadeiros, justamente porque, faltando interesse público, não serviriam a outro propósito que o do escândalo ou desdouro. Já os da ação pública são do interesse público e não subtraíveis ao conhecimento geral."12 É importante lembrar que o direito à privacidade encontra abrigo também na Declaração Universal dos Direitos Humanos ("art. XII: Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências."), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 17) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 11).
A liberdade de expressão "da atividade intelectual, artística, científica e de comunicações" (art. 5º, IX c.c. o art. 220), por outro lado, admite limitações de ordem infraconstitucional, uma vez que o próprio preceito garantidor da liberdade autoriza a possibilidade de restrição desta mediante a edição de lei (art. 220, § 3o). Trata-se, portanto, de norma constitucional de eficácia contida13 , com a peculiaridade de que os limites da regra restritiva estão previamente estabelecidos pelo legislador constituinte nos §§ 3º e 4º do art. 220. São eles: a) limite formal: somente lei federal poderá restringir a liberdade de expressão; b) limite material: a lei apenas poderá ter por conteúdo o estabelecimento dos "meios legais que garantam a pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como o da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente", ou, o procedimento pelo qual o Poder Público regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada. Fora dessas hipóteses, é vedado ao legislador infraconstitucional estabelecer qualquer espécie de limitações à liberdade de expressão.
Além disso, o art. 220, § 2o, reproduzindo o preceito contido no art. 5º, IX, proíbe "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística". Pois bem, considerando ser vedada toda e qualquer intervenção dos Poderes Públicos objetivando impedir a circulação das idéias, como proceder, então, quando a idéia transmitida violar direitos fundamentais de terceiros, caso, por exemplo, de uma propaganda que pregue o racismo ou da divulgação, por um jornal, de fatos pertencentes à esfera de privacidade da pessoa? Por certo que as liberdades de expressão e informação jornalística não são absolutas; como dissemos, são elas princípios constitucionais e como tais podem ser objeto de restrições, objetivando sua harmonização com outros princípios igualmente fundamentais.
Parece-nos que nesse caso a "regra de colisão"14 adotada pela Carta de 88 é a responsabilização posterior do indivíduo ou órgão que abusou de sua liberdade de manifestação ou informação. Nesse sentido, o art. 220, § 1º, faz remissão expressa aos incisos V ("é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem") e X ("são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrentes de sua violação") do art. 5º.
A solução da responsabilização resta ainda mais clara na Convenção Americana de Direitos Humanos ("Pacto de San José da Costa Rica"), tratado internacional de direitos humanos, com natureza de norma constitucional15 , ratificado pelo Brasil em 25 de abril de 1992:
Art. 13 - Liberdade de Pensamento e de Expressão.
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:
a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
Portanto, em geral, não pode o Estado impedir uma informação ou idéia de circular, ainda que essa informação ou idéia afronte direitos fundamentais. A pessoa ou órgão que, no exercício de seu direito de expressão ou informação, violar direitos de terceiros deverá responder civil, penal e mesmo administrativamente16 pelo abuso, nos termos da legislação infraconstitucional em vigor17 . A indenização, expressamente prevista no art. 5º, V e X, da Constituição, terá nessa hipótese uma dupla função: a satisfação material e moral do ofendido e a punição do infrator pelo fato de haver ofendido um bem jurídico da vítima18 .
Em nosso entender, trata-se de uma opção política do legislador constituinte: ainda que eventualmente possam ocorrer abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação, a Constituição assumiu o risco de não impedir previamente a circulação das idéias.
A esse respeito, observa Dworkin, em artigo em que analisa um recente caso julgado pela Corte Federal alemã envolvendo o líder neo-nazista Guenter Deckert: "I know that decent people are impatient with abstract principles when they see hoodlums with pseudo-swastikas pretending that the most monumental cold-blooded genocide ever was the invention of its victims. The hoodlums remind us of what we often forget: the high, sometimes nearly unbereable, cost of freedom. But freedom is important enough even for sacrifices that really hurt. People who love it should give no hostage to its enemies, like Deckert and his odious colleagues, even in the face of the violent provocations they design to tempt us."19
III
A solução constitucional, contudo, se adotada sem a necessária ponderação de valores, pode conduzir, em alguns casos, a situações de flagrante injustiça, totalmente incompatíveis com a idéia de razoabilidade e de primazia da dignidade humana (CF, art. 1º, III) que devem orientar a interpretação do sistema constitucional.
Como observa Fábio Konder Comparato20 , a consciência de que a informação não representa apenas a transmissão de fatos ou idéias, mas é também um meio para formar (ou deformar) opiniões remonta aos antigos. Em nosso século, porém, o advento dos meios de comunicação de massa multiplicou essa capacidade em muitas vezes, transformando o que era antes apenas um direito, em um instrumento de poder e, muitas vezes, de manipulação. Quem levou essa idéia ao paroxismo foi Goebbels, cujas técnicas de propaganda desempenharam papel fundamental no desenvolvimento do regime totalitário de Hitler. É certo - ressalta Comparato - que o regime de concorrência entre os órgãos de informação favorece, numa certa medida, a quebra do monolitismo informativo, evitando, assim, a manipulação21 . Mas isso não é suficiente para impedir que uma informação ou opinião produza danos irreparáveis a um indivíduo ou mesmo a todo uma coletividade. Basta, nesse sentido, lembrar do triste mas paradigmático episódio da Escola-Base. Muito pouca serventia tem o pagamento de indenização pelos danos causados aos diretores da escola, indevidamente apresentados ao público como estupradores de crianças, posto que jamais será possível retornar ao status quo ante.
É verdade que a Constituição brasileira contém uma regra proibindo qualquer intervenção estatal na livre circulação das idéias e das informações e prevendo a responsabilização ulterior daqueles que exercitaram seu direito de forma abusiva. Essa proibição, entretanto, não é absoluta, mas sim o que Alexy denomina de proibição prima facie.
Para Alexy22 , diferentemente da posição de Dworkin, nem todas as regras possuem um caráter definitivo, podendo elas, excepcionalmente, conter cláusulas de exceção não previstas, desde que essas cláusulas estejam fundadas em princípios.
"As disposições de direito fundamental - observa o constitucionalista alemão - podem ser consideradas não apenas como positivações de princípios (...) mas também (...) como expressão de uma vontade de estabelecer determinações frente às exigências de princípios contrapostos. Adquirem, desta maneira, um caráter duplo. Através delas, por um lado, se positivam princípios; mas, por outro, na medida em que apresentam tipos de garantias e cláusulas restritivas diferenciadas, contêm as normas de direitos fundamentais determinações com respeito às exigências de princípios contrapostos. Não obstante, as determinações apresentadas por elas têm um caráter incompleto. De modo algum possibilitam, em todos os casos, uma decisão livre de ponderação. (...) Quando, mediante uma disposição de direito fundamental, se leva a cabo alguma determinação relacionada com as exigências de princípios contrapostos, se estatui com ela não apenas um princípio, mas também uma regra. Se a regra não é aplicável sem ponderação prévia, então, como regra, é incompleta. Na medida que é incompleta, a decisão jusfundamental pressupõe um recurso ao nível dos princípios, com todas as inseguranças que isto implica. Mas, isto não muda em nada o fato de que, na medida de seu alcance, as determinações devem ser levadas a sério. A exigência de levar a sério as determinações estabelecidas pelas disposições de direito fundamental (...) é uma parte do postulado da sujeição à Constituição (...) porque tanto as regras estatuídas pelas disposições constitucionais, como os princípios estatuídos por elas são normas constitucionais. Isto leva a questão da relação de hierarquia entre ambos os níveis. A resposta somente pode indicar que, do ponto de vista da sujeição à Constituição, existe uma prioridade do nível da regra. (...) Mas a sujeição à Constituição significa a sujeição a todas as decisões do legislador constitucional. Portanto, as determinações adotadas no nível das regras precedem as determinações alternativas, que levando em conta os princípios, são igualmente possíveis."23
Aplicando o modelo de Alexy ao nosso problema, temos que as regras constitucionais de vedação da censura e de responsabilização ulterior do indivíduo ou órgão emissor são o meio pelo qual o legislador constituinte pretendeu harmonizar o conflito entre a liberdade de expressão e informação jornalística e outros direitos igualmente fundamentais. Isso significa que, havendo um caso concreto de colisão, não pode, de modo geral, o magistrado, em sua atividade de aplicação do direito, impedir liminarmente a circulação da idéia ou informação, devendo se limitar a punir o responsável, se constatar a violação a direitos de terceiros. A incidência dessa regra, contudo, não é automática: em todas as hipóteses, cabe ao intérprete proceder à necessária ponderação dos valores em jogo, a fim de verificar se a solução constitucional geral (responsabilização posterior) não conduz naquele caso concreto à aniquilação do direito ameaçado de lesão. Se o magistrado constatar que há a possibilidade real dessa aniquilação ocorrer deverá, então, obstar o exercício da liberdade de expressão ou informação24 , a fim de preservar o bem jurídico de maior relevo e, indiretamente, o princípio orientador de toda a ordem jurídica, que é a dignidade humana.
Situação muito semelhante, aliás, ocorre com a regra constitucional que proíbe a utilização, no processo, de provas obtidas por meio ilícito (art. 5º, LVI). A posição da doutrina e da jurisprudência anteriores à Constituição de 88 era pela admissão da prova relevante, punindo o responsável pelo ato ilícito praticado na colheita ilegal da prova. Com a promulgação da Carta Magna passou-se a entender que a prova obtida por meios ilícitos deveria ser excluída do processo, por mais relevantes que fossem os fatos apurados (regra geral). Hoje, contudo, tem-se, em situações de extrema gravidade e excepcionalmente, admitido a prova ilícita, com fundamento no princípio da proporcionalidade ou equilíbrio entre valores fundamentais colidentes. É o caso, por exemplo, da admissibilidade das provas obtidas por meio ilícito favor rei. A esse respeito, observam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho "(...) embora reconhecendo que o subjetivismo ínsito no princípio da proporcionalidade pode acarretar sérios riscos, alguns autores têm admitido que sua utilização poderia transformar-se no instrumento necessário para a salvaguarda e manutenção de valores conflitantes, desde que aplicado única e exclusivamente em situações tão extraordinárias que levariam a resultados desproporcionais, inusitados e repugnantes se inadmitida a prova ilicitamente colhida."25
CONCLUSÕES
1. A liberdade de expressão e informação jornalística são direitos fundamentais do ser humano e constituem um dos pilares do Estado Democrático de Direito, nos termos do art. 1º, caput e inciso V da Constituição de 1988.
2. A liberdade de expressão e informação não são, contudo, princípios absolutos, encontrando seu limite na proteção constitucional à privacidade, à honra e à imagem das pessoas e no respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família (CF, arts. 5º, IV, V, IX, X, 220, caput e § 1º e 221, IV).
3. A colisão entre os princípios da liberdade de expressão e de informação e os demais direitos fundamentais da pessoa é solucionada pelas regras constitucionais de proibição da censura e de responsabilização ulterior do indivíduo ou entidade que abusar de sua liberdade (CF, arts. 5º, V, IX e X e 220, §§ 1º e 2º, e Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 13).
4. Em situações excepcionais, contudo, pode o Judiciário impedir a circulação de determinada idéia ou notícia, com fundamento nos princípios constitucionais da proporcionalidade e da proteção à dignidade humana.
BIBLIOGRAFIA
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo; Brasília, Pólis; UNB, 1989.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 1994.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Lisboa, Almedina, 1998.
COMPARATO, Fábio Konder. Para Viver a Democracia. São Paulo, Brasiliense, 1989.
DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law: the Moral Reading of the American Constitution. Cambridge, Harvard University Press, 1996.
_________. Los Derechos en Serio. Barcelona, Ariel, 1989.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990.
GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997.
KANT, Emmanuel. Filosofia de la História. Buenos Aires, Nova Buenos Aires, 1964.
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980, p. 230.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro, Forense, 1995.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo, Max Limonad, 1996.
PROCURADORIA Geral do Estado. Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo, Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1997.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3a ed. revista, ampliada e atualizada, São Paulo, Malheiros, 1998.
_________. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990.
1 Cf. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Lisboa, Almedina, 1998, pp. 1033-1063; Robert Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997, pp. 81-172; Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica), São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990, pp. 92-134 e Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 1994, pp. 228-266.
2 Elementos de Direito Administrativo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980, p. 230.
3 Ronald Dworkin, "El modelo de las normas (I)" in Los Derechos en Serio, Barcelona, Ariel, 1989, pp. 75-80.
4 Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, São Paulo; Brasília, Pólis; UNB, 1989, pp. 86-110.
5 Cf. Robert Alexy, op. cit. pp. 90-98.
6 Emmanuel Kant, "Respuesta a la pregunta: qué es la Ilustración?" in Filosofia de la História, Buenos Aires, Nova Buenos Aires, 1964, pp. 58-67.
7 A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 241.
8 Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990, p. 218.
9 La Libertá di Stampa nell’Ordinamento Giuridico Italiano, apud José Afonso da Silva, op. cit. p. 217.
10 Direito Constitucional e Teoria da Constituição, op. cit. pp. 1142-1143.
11 A Reconstrução dos Direitos Humanos, op. cit. p. 251. Para Celso Lafer, a privacidade é o direito fundamental de todo indivíduo de excluir do conhecimento de terceiros aquilo que só a ele se refere e que diz respeito ao seu modo de ser na esfera privada (op. cit. p. 239).
12 TJSP - 2ª Câmara Civil - AC nº 178.976-1 - rel. Des. Walter Moraes - JTJ/SP-LEX 145/108.
13 Sobre a classificação das normas constitucionais quanto à sua eficácia, cf. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 3a ed. revista, ampliada e atualizada, São Paulo, Malheiros, 1998.
14 Regra de colisão, aqui, é a regra resultante da ponderação de princípios constitucionais opostos. Cf. Robert Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, op. cit. pp. 90-95.
15 Sobre a natureza constitucional dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, cf. Flávia Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, São Paulo, Max Limonad, pp. 82-103.
16 Nos termos do art. 21, XII, "b", da Constituição brasileira, a atividade de radiodifusão sonora e de sons e imagens é serviço público de competência da União. Desde que imposta por decisão judicial (CF, art. 223, § 4º), pode a lei estipular como sanção administrativa, nos casos de graves e reiteradas violações a direitos fundamentais, o "cancelamento" [rectius: rescisão] da concessão outorgada à empresa exploradora do serviço.
17 Atualmente, no Brasil, a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250, de 09/02/1967), bem como os Códigos Penal e Civil.
18 Caio Mário da Silva Pereira, Responsabilidade Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1995, p. 317.
19 Ronald Dworkin, "Pornography and Hate - Addendum: A Compelling Case for Censorship?" in Freedom’s Law: the Moral Reading of the American Constitution, Cambridge, Harvard University Press, 1996, pp. 223-224.
20 "Tocando no ponto nevrálgico: a democratização da informação e da comunicação social" in Para Viver a Democracia, São Paulo, Brasiliense, 1989, pp. 137-138.
21 Idem, p. 138.
22 Teoria de los Derechos Fundamentales, op. cit. pp. 98-103.
23 Idem, pp. 133-134.
24 Essa posição, de resto, é de todo compatível com o poder de cautela conferido ao Judiciário pelo art. 5º, inciso XXXV da Constituição ("A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito").
25 As Nulidades no Processo Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 134.