Sistema
Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos
Legislação e Jurisprudência
SUMÁRIO BIBLIOTECA VIRTUAL INÍCIO
2 JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
2.2 Jurisdição Contenciosa
2.2.1 NOTA INTRODUTÓRIA À JURISDIÇÃO CONTENCIOSA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Daniela Ikawa1
Mônica de Melo2
Olga Espinoza Mavila3
Sumário: 1. Introdução. 2. O acesso à jurisdição contenciosa.
3. Processamento dos casos perante a Corte. 4. Breve exposição dos casos selecionados. 5. Execução das sentenças nos países que reconhecem a jurisdição da Corte. 6. Conclusão.
1. Introdução
A Constituição do Brasil de 1988 significou um importante marco para a transição democrática brasileira. Após um período de vinte anos de governos militares, tivemos em 1984 um expressivo movimento nacional por eleições diretas (“Diretas Já”)4 que, embora não vitorioso, gerou frutos nos anos seguintes, com o nascimento dos plenários, comitês e movimentos pró-participação popular na Constituinte, em todo o Brasil. No início de 1985 surgiu o Projeto Educação Popular Constituinte, houve o lançamento do Movimento Nacional pela Participação Popular na Constituinte e as pessoas passaram a articular-se para garantir a participação popular no processo constituinte5. Conquista fundamental das diversas organizações envolvidas foram as chamadas “emendas populares”, in-cluídas no Regimento Interno da Constituinte. A proposta de emenda popular deveria ser subscrita por, no mínimo, trinta mil eleitores, em lista organizada por, no mínimo, três entidades associativas, legalmente constituídas6. Houve, ainda, a possibilidade de apresentação de sugestões e audiências públicas. Essa foi a primeira vitória de um movimento que iniciou pretendendo a Assembléia Constituinte exclusiva. A Assembléia Constituinte pedida pela “Carta dos Brasileiros ao Presidente da República e ao Congresso Nacional”, escrita pelo jurista Goffredo Telles Jr., em nome do Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte, acabou por ser derrotada na Comissão Mista que redigiria a emenda convocatória da Constituinte.
O Congresso Nacional, eleito em 15.11.1986, reuniu-se em 1º.2.1987, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte e “construiu” a Constituição em grande mutirão popular.
Reflexos desse processo intensamente participativo, que marcou o renascimento da jovem democracia brasileira, foi o tratamento que se deu aos direitos e garantias fundamentais, que passaram a constar dos primeiros capítulos da Constituição Federal de 1988, de forma extensa, abrangente e com tratamento privilegiado, já que intangível pelo Poder Constituinte Derivado, por força do artigo 60, parágrafo 4º. Ou seja, o legislador constituinte derivado pode ampliá-los, melhorá-los, mas lhe é vedado sequer “tender” a aboli-los.
Dessa forma, consignou-se que a República Federativa do Brasil deve reger-se, em suas relações internacionais, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II), sendo que o Brasil comprometeu-se expressamente a propugnar pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos (art. 7º do ADCT).
A mensagem do Ministro das Relações Exteriores, ao recomendar o reconhecimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, observou que a Constituição brasileira propugna pela formação de um tribunal internacional de direitos humanos, que já existe (a Corte Interamericana de Direitos Humanos) e cuja criação foi proposta exatamente pela Delegação do Brasil, na IX Conferência Interamericana, realizada em Bogotá, no ano de 1948.
Essa é apenas uma dentre as inúmeras outras razões que fundamentaram a edição do Decreto Legislativo n. 89, de 3 de dezembro de 1998, que reconheceu a competência obrigatória da Corte, nos seguintes termos:
“O Congresso Nacional decreta:
Artigo 1º - É aprovada a solicitação de reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos para fatos ocorridos a partir do reconhecimento, de acordo com o previsto no parágrafo primeiro do artigo 62 daquele instrumento internacional.
Parágrafo único - São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão da referida
solicitação.
Artigo 2º - Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação.”
Era o que faltava, para que o Brasil pudesse se inserir na moderna e cada vez mais diversificada proteção regional dos direitos humanos. A partir de 1998, a sociedade brasileira passou a contar com um poderoso instrumento para a proteção e reparação das violações dos direitos humanos, ampliadora da cidadania e realizadora dos princípios constitucionais com o qual o Estado Brasileiro está comprometido desde 1988.
Portanto, inaugura-se uma nova fase na promoção e defesa dos direitos humanos, no Brasil. Conhecer o funcionamento da Corte e alguns casos já julgados é de extrema importância para a qualificação de todos aqueles que farão uso da proteção interamericana.
Dessa forma, oferecemos uma amostra representativa dos casos julgados pela Corte, para que possam servir de paradigmas na construção permanente da proteção jurídica dos direitos humanos, no Continente Americano, e especialmente no Brasil.
2. O acesso à jurisdição contenciosa
Apenas os Estados-partes da Convenção Americana que houverem reconhecido a jurisdição da Corte, e a Comissão Interamericana têm acesso direto à Corte Interamericana. O acesso de organizações e de indiví-duos se efetiva através da Comissão Interamericana. Esclarece o artigo 44 da Convenção que quaisquer pessoas, grupos de pessoas ou organizações podem apresentar denúncias perante a Comissão.
O processo passa da Comissão para a Corte, por iniciativa da Comissão ou do Estado. Se, estando o processo perante a Comissão, o Estado, desde logo, não fornecer a essa as informações requisitadas, ou se não houver a efetivação de um acordo entre o Estado e as vítimas, a comissão enviará ao Estado um relatório contendo recomendações. Recebidas essas, poderá o próprio Estado interessado submeter o caso à Corte. Se o Estado não utilizar dessa faculdade, e não efetivar acordo com as vítimas num prazo de três meses, contados a partir do envio do relatório pela Comissão, poderá a Comissão emitir sua opinião e suas conclusões por voto da maioria absoluta de seus membros, prescrevendo novo prazo para que o Estado siga suas recomendações, ou apresentar o caso à Corte Interamericana.
Vale lembrar que os Estados que tenham reconhecido a competência da Corte, ao contrario dos indivíduos e das organizações, podem acionar diretamente a Corte, por determinação do artigo 61 da convenção.
3. O processamento dos casos perante a Corte
Como exposto anteriormente, tanto os Estados-partes quanto a Comissão podem apresentar casos diretamente à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Contudo, deve a Comissão participar de todos os processos perante a Corte, independentemente de quem lhe tenha dado ini-ciativa. A jurisdição da Corte abarca a aplicação de medidas relativas a todos os direitos protegidos pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Deve, no entanto, ser reconhecida por cada Estado-parte, em declaração específica, por ocasião da ratificação da Convenção ou em momento subseqüente.
A Corte tem sede na Costa Rica, mas pode se reunir no território de qualquer dos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos, quando a maioria da Corte considerar apropriado e o Estado envolvido der a sua permissão.
A própria Corte tem entendido que deve lhe ser devolvida a análise dos requisitos de admissibilidade determinados nos artigos 44 a 47 da Convenção.
Ainda, tem-se admitido que, em casos de extrema gravidade e urgência, a Corte pode determinar a adoção de medidas cautelares urgentes necessárias a evitar dano irreparável às pessoas.
A decisão da Corte, que deve ser motivada, pode estipular para o Estado obrigações de caráter mandamental ou de caráter indenizatório. Conforme o determinado no artigo 67 da Convenção, essa decisão é final e irrecorrível, vinculando os Estados que figuraram como parte na demanda. Abre-se, contudo, a possibilidade de apresentação de pedido de reconsideração por quaisquer das partes, a ser pleiteado no prazo de noventa dias da notificação do julgamento.
Ademais, não é necessário que a Corte profira decisão por unanimidade. Poderá haver votos separados, de natureza dissidente ou concorrente.
No caso de sentença indenizatória, os Estados que figuraram como parte no processo promoverão a execução, em conformidade com suas leis internas.
O julgamento da Corte segue os princípios do juiz natural, da imparcialidade e da identidade física do juiz. Quanto ao princípio do juiz natural, estabelece a Convenção Americana que haverá sete juizes eleitos por um período de seis anos, sendo admitida uma reeleição. Os juízes devem continuar no ofício até a expiração do termo para o qual foram eleitos.
No tangente ao princípio da imparcialidade, adotou a Convenção várias regras para assegurá-la. Primeiro, não pode haver mais de um juiz com a mesma nacionalidade. Segundo, a votação para a escolha dos juízes é secreta. Terceiro, os juízes devem gozar das mesmas imunidades estendidas a agentes diplomáticos. Quarto, os juízes da Corte não podem ser responsabilizados por suas decisões no exercício da função. Podem, contudo, ser sancionados por razões justificáveis, pelo voto de dois terços dos Estados-partes da Convenção. Quinto, apura-se a incompatibilidade entre a posição de juiz da Corte e qualquer outra atividade que possa afetar a sua independência ou imparcialidade. Por fim, determina-se que o juiz receba emolumentos e ajudas de custo para as viagens que devam ser efetuadas.
No que toca ao princípio da identidade física, estabelece a Convenção que, mesmo expirado o termo de mandato, o juiz deve continuar a acompanhar os casos que tenha começado a analisar e que ainda estejam pendentes. Essa regra funciona também como garantia de imparcialidade da Corte.
Vale dizer que a Corte Interamericana possui um importante instrumento de pressão política para que o Estado cumpra a obrigação por ela imposta. A cada ano, a Corte submete à apreciação da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos um relatório contendo os casos nos quais os Estados não tenham cumprido as sentenças proferidas. Nesse relatório, pode a Corte fazer novas recomendações. Ademais, as decisões de natureza condenatória podem ser executadas pelos beneficiários, no país de origem.
4. Breve exposição dos casos selecionados
Foram selecionados onze casos7 julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que formam uma amostra dos casos mais representativos, capaz de oferecer um panorama da jurisprudência da Corte, sobre os quais faremos um breve relato:
A parte selecionada do Caso Aloeboetoe (10.9.93) refere-se a uma sentença de reparações (art. 63.1 da Convenção), contra o Governo do Suriname. A denúncia foi apresentada pela Comissão em 15.1.88. Foi proferida sentença em 4.12.91. O caso levado pela Comissão diz respeito a um grupo de mais de 20 homens que teriam sido atacados, humilhados e espancados com as culatras de suas armas por um grupo de militares e alguns deles teriam sido feridos com baionetas e facas e detidos sob a suspeita de serem membros do grupo subversivo “Comando da Selva” (fato ocorrido em 31.12.87). Os militares levaram sete pessoas, entre elas uma menor de 15 anos. Na altura do km 30 os militares determinaram que as pessoas saíssem, sendo que algumas foram tiradas a força. Deram-lhes pás e mandaram que cavassem. Um tentou escapar e foi ferido. Os outros seis foram assassinados. O ferido acabou morrendo, pois ficou vários dias sem socorro.
A Comissão, face a impossibilidade de solução amistosa, determinou, através de relatório, que o Suriname investigasse as violações, processasse e punisse os responsáveis, tomando as medidas necessárias para evitar uma nova ocorrência e, por fim, reparasse as vítimas no prazo de 90 dias. Como o Governo não cumpriu os itens previstos no Relatório, a Comissão encaminhou o caso à Corte, para que esta determinasse o pagamento de indenização aos familiares das vítimas, apuração e responsabilização dos agentes envolvidos. Na Corte, o Suriname acabou reconhecendo sua responsabilidade. Em conseqüência, a Corte proferiu sentença (4.12.91).
A partir daí a decisão da Corte passa a discorrer, em profundidade, sobre todos os aspectos que envolvem uma sentença de reparação civil. Dessa forma, a Comissão propõe a indenização por danos materiais (dano emergente/lucro cessante) e morais, bem como custas dispendidas com todo o processo, assim como medidas não-pecuniárias.
A relevância da decisão está justamente na riqueza com que são discutidos os parâmetros indenizatórios, os critérios utilizados para explicitar quem seriam os beneficiários, sucessores e que direito seria aplicado, o do Suriname ou o da tribo a que as vítimas pertenciam. Passou-se a enfrentar a questão dos vínculos familiares próximos e os vínculos comunitários, já que os mortos pertenciam a uma mesma aldeia, com organização própria, o que passa a ser relevante para a caracterização do dano moral.
Em relação às medidas não-pecuniárias, temos a exigência de que o Presidente do Suriname se desculpe publicamente pelos assassinatos e que os Chefes da tribo sejam convidados a comparecer ao Congresso do Suriname, para que lhes sejam apresentadas as desculpas, que o Governo desenterre os cadáveres das vítimas e que sejam devolvidos às suas respectivas famílias, dentre outras. O Suriname contestou, alegando que o pedido era oneroso e propõem medidas de caráter não-financeiro. A Corte nomeou um perito para obter informações mais completas, a fim de determinar o montante das indenizações. A Secretaria Adjunta chegou a fazer uma visita in loco para averiguações. Por fim, é importante ressaltar que a Comissão interpreta o artigo 63.1 da Convenção, no sentido de que a obrigação é restabelecer o status quo ante, ou seja, deve-se chegar a valores que busquem recuperar a situação original, que seja suficiente para reparar todas as conseqüências das violações sofridas.
O Caso Gangaram Panday (21.1.94) também é contra o Governo do Suriname. Nesse caso, ressaltamos a existência de votos vencidos. A vítima desse caso foi detida em 5.11.88 pela polícia militar, quando chegou ao aeroporto no Suriname. A polícia alegou que a vítima havia sido expulsa da Holanda e que, portanto, seria enviada ao Fort Zeelandia (uma prisão, ao que parece). Após inúmeras ligações do irmão para saber o paradeiro da vítima, foi informado que a vítima teria se enforcado. O corpo, no necrotério, tinha hematomas em várias partes do corpo, os testículos ha-viam sido esmagados e havia um orifício nas costas, segundo pode apurar o irmão da vítima. Nesse caso, foram feitas três necropsias, face à controvérsia entre homicídio precedido de tortura e homicídio. O advogado do denunciante disse que seria perigoso levar o caso perante a Justiça do Suriname.
O caso foi levado à Corte, para que ela pudesse determinar se a detenção foi ilegal ou arbitrária e se houve violação da regra que determina que a vítima deveria ter sido levada, sem demora, à presença de um juiz ou outro funcionário autorizado pela lei para o exercício de funções judiciais. Para tanto, se submete à Corte a análise das leis internas referentes à detenção e sua aplicação e compatibilidade com a Convenção. O voto dissidente analisa a responsabilidade do Estado pela vida, tenha ocorrido ou não o suicídio, já que a vítima estava sob a custódia do Estado.
No que tange à Sentença de Reparações do Caso El Amparo contra o Estado da Venezuela, a irracionalidade da violência militar se faz presente de novo, ao afetar o direito à vida de 16 pescadores inocentes no rio El Amparo. Sobreviveram apenas duas pessoas. A importância da referida decisão não consiste na discussão e posterior decisão da Corte com respeito à indenização pelos danos materiais e morais, mas na dissidência do voto do juiz Antônio Cançado Trindade. Este se baseia no fato de que Código de Justiça Militar venezuelano (arts. 54.2 e 54.3), ao outorgar ao Presidente da República a atribuição de evitar um julgamento militar ou ordenar sua suspensão quando assim estimar conveniente para os interesses da nação, está contradizendo os preceitos da Convenção Americana, pois “a própria existência de uma disposição legal pode per se criar uma situação que afeta diretamente os direitos protegidos” e, pelo dever de prevenção, não se pode esperar que a norma produza um dano, razão pela qual se considera que a Corte devia se manifestar nesse sentido, inclusive se, no caso concreto, o Código de Justiça Militar não tenha sido aplicado. A transcendência dessa discussão (apesar de que na prática não tivesse efeitos concretos) está na substanciosa contribuição doutrinária exposta na fundamentação da dissidência e que apresenta grande utilidade para o desenvolvimento da doutrina do direito internacional dos direitos humanos.
Na Sentença de Reparações do Caso Neyra Alegria e outros8, a Corte Interamericana se ocupou de velar pelos direitos humanos das famílias das pessoas vítimas da brutal repressão pelo Estado peruano, decorrente da suposta intenção de resguardar a ordem e segurança (no que foi a prisão de San Juan Batista, mais conhecida de “El Frontón”).
Esta decisão representa um bloqueio frente ao inalterável circuito da impunidade e adquire vital relevância ao pôr em evidência as atitudes do aparato estatal dos países de América Latina, com respeito aos cárceres e ao tratamento que ali se dá aos reclusos.
A questão central do Caso Loayza Tamayo, segundo a Corte, consistiu na violação do princípio de non bis in idem, visto que a vítima foi julgada pelo mesmo crime duas vezes, sucessivamente. Tamayo foi presa em fevereiro de 1993 e ainda se encontrava detida em setembro de 1997, aproximadamente quatro após sentença de absolvição ter sido proferida pela Justiça Militar. Durante a detenção, Tomayo foi torturada e submetida a tratamento desumano e cruel, envolvendo violência física e ameaças, restrição a visitas, suprimento da alimentação e do acesso à higiene, sendo detida em uma cela de pequenas dimensões, sem luz artificial ou natural e sem ventilação. Quanto ao processo, foi-lhe impedida a utilização de qualquer remédio contra a prisão arbitrária, prática contrária à Convenção Americana, mesmo em períodos de emergência. Ademais disso, sua advogada teve seu acesso á vítima restringido.
A Corte decidiu pela condenação do Estado peruano pela violação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no tocante aos artigos 5º (direito à integridade pessoal), 7º (direito à liberdade pessoal), 8º(1) (direito a julgamento por juiz competente), 8º(2) (princípio da presunção de inocência), 8º(4) (princípio do non bis in idem) e 25 (direito à proteção judicial), em combinação com o artigo 1º(1), que obriga o Estado a respeitar os direitos assegurados na Convenção, determinando a libertação imediata da vítima e o pagamento de indenização por danos físicos e morais.
O Caso Castillo Páez discorreu sobre a prisão arbitrária e posterior desaparecimento de Ernesto Rafael Castillo Páez. Vale destacar dois pontos desse caso. O primeiro refere-se ao exaurimento dos recursos internos, consistente em requisito de admissibilidade para apreciação da petição pela Corte. A Corte entendeu que a ineficácia do recurso de habeas corpus impetrado internamente afastou a necessidade de esgotamento. O segundo ponto diz respeito às violações decorrentes do desaparecimento.
Dispôs a Corte que o desaparecimento envolve a violação de vários direitos estabelecidos na Convenção, dentre eles o direito à vida. O Estado foi condenado pela violação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no tangente aos artigos 4º (direito à vida), 5º (direito à integridade pes-soal), 7º (direito à liberdade pessoal) e 25 (direito à um recurso interno efetivo), em relação ao artigo 1º(1), mencionado acima. Dada a natureza irreversível das violações, a Corte determinou que o Estado peruano indenizasse os familiares da vítima e os ressarcisse das despesas processuais incorridas.
No Caso Blake, a Corte analisou o desaparecimento de Nicholas Chapman Blake, seqüestrado por agentes do Estado da Guatemala, em março de 1985. O caso tem considerável importância, no que toca ao alcance de direitos resguardados pela Convenção Americana e aos poderes investigatórios da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Primeiro, a Corte ratificou o seu entendimento firmado em Velásquez, no sentido de que o desaparecimento forçado consiste em uma violação de caráter permanente; estendendo sua atuação, dessa forma, para delitos que se iniciaram anteriormente à aceitação da competência dessa pelo Estado, mas que se prolongaram além da data dessa aceitação. Vale ressaltar aqui o voto arrazoado do juiz Antonio Augusto Cançado Trindade, que traçou restrições tangentes às limitações temporais à competência da Corte. Segundo, dispôs que as provas concernentes ao desaparecimento não precisam ter necessariamente natureza direta, podendo consistir unicamente de provas circunstanciais. Apontou-se, mais uma vez, a informalidade dos critérios de apreciação de provas pela Corte. Terceiro, concluiu que, nos casos de desaparecimento forçado, o direito à prestação jurisdicional em tempo razoável, assim como a proteção à integridade física e moral se estende aos familiares da vítima. A Corte declarou que o Estado da Guatemala deveria indenizar os familiares da vítimas pelos danos sofridos, além de lhes ressarcir das despesas processuais efetuadas.
O Caso Velásquez Rodríguez trata do desaparecimento involuntário do estudante Angel Manfredo Velásquez Rodríguez, em setembro de 1981, após a sua detenção arbitrária por pessoas ligadas às Forças Armadas ou sob a sua direção. Destacam-se as discussões traçadas acerca do requisito de esgotamento das instâncias internas, usualmente levantado pelo Estado demandado contra o processamento do feito, dos critérios relativos à apreciação de provas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e da legitimação das vítimas para a intervenção no processo perante a Corte.
Sobre o esgotamento, ressaltou-se a necessidade dos recursos internos serem eficazes e adequados para a proteção do direito ameaçado ou violado. No tocante às provas, explicitou-se a maior informalidade das cortes internacionais em relação às nacionais na valoração de provas, o que possibilitaria a fundamentação de um processo de desaparecimento em provas puramente circunstanciais. No que concerne às testemunhas, repeliram-se as insinuações do Estado de Honduras, no sentido de que pessoas que recorram ao sistema interamericano incorreriam em deslealdade para com seu país, assim como aquelas no sentido de que a existência de antecedentes criminais afastaria a idoneidade de testemunhas. Quanto à legitimação, cabe ressaltar a opinião dissidente do Juiz Piza Escalante, tendente a apoiar uma maior participação das vítimas no processo perante a Corte. A Corte determinou que o Estado pagasse às vítimas uma justa indenização.
Na Sentença de Reparações do Caso Suárez Rosero contra o Estado do Equador, a Corte Interamericana, de acordo com o princípio de reparação diante duma violação das normas internacionais de direitos humanos, estabeleceu a abrangência do caráter reparatório, considerando que este consiste não só na indenização pecuniária, mas também na obrigação de investigar os responsáveis, e de adotar as medidas que convenham para a sua não-repetição. No caso concreto, a sentença determinou a derrogação do artigo 114 do Código Penal equatoriano e impôs a necessidade de uma ação estatal destinada a remediar as deficiências sistemáticas no sistema penal do país, para o que considerou adequada a promulgação de “leis, regulamentos, instruções ou ordens” para prevenir a detenção prolongada em condições de “incomunicabilidade”. Determinou ainda a adoção das medidas necessárias para o respeito das garantias judiciais. Essas disposições adquirem atualidade e transcendência, ao se verificar os dramáticos índices de prisões preventivas nos sistemas criminais do continente, pelo que os Estados têm o dever de reagir, adequando suas legislações às normas da Convenção Americana, constituindo-se, no marco de um Estado de direito, garantidor das liberdades fundamentais da pessoa humana.
No tocante ao Caso Ivcher Bronstein, contra o Peru, temos que foi concedida em 1984, por decisão do Presidente do Peru, a nacionalidade peruana à vítima, sob a condição de que renunciasse à sua nacionalidade israelense. Em 6.12.84 o Senhor Ivcher renunciou à sua nacionalidade israelense e no dia seguinte lhe foi concedido o título de nacionalidade peruana. A vítima é proprietária de ações de empresas concessionárias de canais televisivos no Peru, sendo que a nacionalidade peruana é requisito indispensável para tanto. O Senhor Ivcher é dono de uma rede de televisão que fez denúncias da realização de torturas cometidas pelo serviço de inteligência do Exército do Peru. Em conseqüência dessas denúncias, foi sugerido que a vítima modificasse a sua linha informativa. Ao mesmo tempo, o Executivo expediu uma nova regulamentação, possibilitando o cancelamento de nacionalidade dos peruanos naturalizados.
A decisão da Corte analisa o direito à nacionalidade, a liberdade de expressão e o direito de propriedade, todos presentes na Convenção Americana e que teriam sido violados pelo Peru.
Por fim, temos a sentença sobre a competência da Corte em relação à suposta retirada do Peru da jurisdição contenciosa, a qual tentou aproveitar, inclusive, para o caso de Ivcher, que estava em andamento, sobre a qual vale a pena salientar algumas informações. O Estado peruano é parte do Pacto de San José de Costa Rica (ou Convenção Americana), desde 28 de julho de 1978, e aceitou formalmente a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 21 de janeiro de 1981. Já se passaram duas décadas, e apesar de estar sendo processado por diferentes violações aos direitos humanos9, em 9 de julho de 1999, o governo do Peru decidiu unilateralmente retirar-se da jurisdição contenciosa da Corte, alegando razões de ordem interna, e negando-se a partir dessa comunicação a conhecer das denúncias que tramitam perante a Corte (entre elas, a petição dos magistrados do Tribunal Constitucional do Peru).
Refere-se a sentença, que comentamos, a “pretendida” retirada do Estado peruano, entendendo ser um absurdo aceitar uma decisão que desrespeita todas as regras do direito internacional, quer baseadas em procedimentos previamente estabelecidos (art. 78 da Convenção Americana e art. 56.2 da Convenção de Viena), quer na boa-fé (art. 31.1 da Convenção de Viena), razões estas pelas quais a Corte desconhece a intenção do governo do Peru e considera inadmissível sua retirada com efeitos imediatos, salvaguardando com esta decisão a sua existência e a manutenção do sistema de proteção dos direitos humanos de todos os latino-americanos.
5. Execução das sentenças nos países que reconhecem a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Um tratado de direitos humanos, para passar de documento declarativo a instrumento de real efetividade, precisa gerar instituições que garantam a sua eficácia no plano prático. O sistema interamericano avaliou essa necessidade e criou a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Ao terem assinado o Pacto de San José de Costa Rica (ou Convenção Americana) e logo ratificado a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana, os países de América obrigaram-se ao cumprimento não só das disposições que a Convenção estabelece, mas também ao acatamento das resoluções da Corte, quer sancionando o Estado-parte por violação de direitos humanos, quer o absolvendo da culpa.
Essa executabilidade, que no campo internacional nem se discute, no âmbito interno adquire algumas matizes, pois é cada Estado o responsável de preparar o caminho para dar efetividade às sentenças desse organismo supranacional. Essa implementação pode se dar “através de medidas legislativas, administrativas, judiciais ou de qualquer outra espécie”10. Diante desse panorama, o papel que assumem os órgãos estatais para a implementação do direito internacional dos direitos humanos é fundamental, pois só eles darão aplicação fática a esses direitos no contexto doméstico. Merece aqui salientar a figura dos aparatos jurisdicionais11, como instituições com a responsabilidade de pôr em prática os direitos e garantias estabelecidas nas Constituições dos Estados, servindo de primeira filtragem diante das violações aos direitos humanos12. Mas, paralelamente à aplicação das normas e resoluções internacionais, há uma outra função vital para o andamento do sistema interamericano: a fiscalização que o próprio sistema faz dos Estados. Com esse fim “criam-se mecanismos de supervisão do cumprimento das obrigações internacionais […que vão…] desde informes periódicos, procedimentos confidenciais, até verdadeiros processos judiciais ou quase judiciais”13.
Por outro lado, a própria Convenção Americana assinala em seu artigo 68.2 que “a parte da sentença que determinar indenização compensatória poderá ser executada no país respectivo pelo processo interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado”, podendo asseverar-se que a intenção da Convenção não foi a de restringir a executabilidade das decisões da Corte ao conteúdo indenizatório (nem só às sentenças e não às resoluções da Comissão). Uma afirmação desse tipo representaria um verdadeiro absurdo, contradizendo os princípios da progressividade e da boa-fé que informam o direito internacional dos direitos humanos, devendo esta ser interpretada de forma abrangente, que não limite, e sim inclua outros preceitos destinados a uma maior proteção.
Voltando ao plano nacional, cada um dos Estados estabelece os procedimentos a seguir, ao serem sancionados pela Corte Interamericana. Esses procedimentos nem são sempre expressamente regulamentados nas leis nacionais. Desenvolve-se nesses casos segundo o costume de cada país. Todavia, existe uma tendência a se positivizar tais caminhos, na procura da almejada eficácia. Assim, podemos observar países como a Colômbia que, através da Lei n. 288 criou um comitê de ministros que se ocupa de aconselhar o Estado acerca da conveniência ou não de cumprir a recomendação da Comissão Interamericana (no caso de não concordar com a recomendação da Comissão, submete o assunto à jurisdição da Corte Interamericana, executando logo a decisão desta última). A vantagem dum dispositivo semelhante consiste na importância que outorga às resoluções da CIDH, assumindo-se que não será preciso acudir à jurisdição contenciosa para solucionar esse tipo de controvérsia. Alguns países, imitando o exemplo colombiano, possuem projetos de lei em trâmite que visam regulamentar esse procedimento, tal como a Argentina e o Brasil. Contudo, existe outro país que, tendo estabelecido canais normativos para a execução das resoluções dos organismos internacionais, hoje retrocedeu consideravelmente, ao negar a aplicabilidade da competência contenciosa da Corte em seu território. Estamos nos referindo ao Peru e à perigosa posição que, em meados do ano passado assumiu, violando as normas da Convenção e criando um antecedente negativo para o desenvolvimento do sistema interamericano.
Ainda estamos longe de atingir níveis mínimos de respeito aos direitos fundamentais, mas acreditamos que o grande avanço do sistema nas últimas décadas, no tocante ao esforço de estabelecer um maior acesso aos organismos de proteção e de implementar internamente suas decisões, repercutirá em benefício de todo o continente e de seu desenvolvimento com vida, dignidade, trabalho, educação, saúde e paz.
6. Conclusão
Na última década, o Brasil tem se inserido formalmente no sistema internacional de proteção dos direitos humanos, com a ratificação dos principais tratados referentes à matéria.
Essa posição de primazia dos direitos humanos é plenamente amparada pela atual Constituição, que elege como fundamento da República a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e a cidadania (art. 1º, II), que diz que o Brasil tem que se reger em suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos (art. 4º), que diz ser objetivo fundamental do Brasil promover o bem de todos, erradicar a pobreza e a marginalização e construir uma sociedade justa, livre e solidária (art. 3º, I, III e IV), que inverteu a ordem de apresentação dos direitos fundamentais que passaram a constar dos primeiros artigos da Constituição.
A edição do Decreto Legislativo n. 89/98, reconhecendo a competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, amplia consideravelmente a promoção e proteção dos direitos humanos dos brasileiros e brasileiras, no sistema regional.
Como diria Norberto Bobbio,14 o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos humanos, não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los.
É possível afirmar que, pelo menos no que se refere à proteção legislativa e jurisdicional, o Brasil caminha nessa direção._______________
1. Mestre em Direito pela Columbia University e colaboradora do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da PGE/SP.
2. Procuradora do Estado de São Paulo, Mestre, Professora da PUC/SP, Diretora do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP), Coordenadora da “Oficina dos Direitos da Mulher” e membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da PGE/SP.
3. Mestranda em Direito na Universidade de São Paulo e colaboradora do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da PGE/SP.
4. Emenda Dante de Oliveira, votada em 25.4.1984.
5. Sobre todo o processo de formação dos plenários, comitês e movimentos, e sua participação no processo constituinte, ver Michiles, Carlos et al, Cidadão Constituinte: a saga das emendas populares, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
6. Artigo 24 do Regimento Interno da Assembléia Constituinte:
7. 1) Caso Aloeboetoe (10.9.93); 2) Caso Gangaram Panday (21.1.94); 3) Caso El Amparo (14.9.96); 4) Caso Neira Alegría (19.9.96); 5) Caso Loayza Tamayo (17.7.97); 6) Caso Castillo Páez (3.11.97); 7) Caso Blake (24.1.98); 8) Caso Velásquez Rodríguez (29.7.98); 9) Caso Suárez Rosero (20.1.99); 10) Caso Ivcher Bronstein (24.9.99); 11) Caso da retirada do Peru da jurisdição da Corte (24.9.99).
8. Ela constitui a terceira sentença neste caso, produto da falta de acordo entre a Comissão Interamericana e o governo peruano para determinar o montante da reparação, existindo, além desta, uma primeira sobre exceções preliminares (11.12.91) e mais uma que se ocupa sobre o mérito do assunto (19.1.95).
9. Caso Tribunal Constitucional (que representava um risco para a candidatura do atual presidente Alberto Fujimori), Caso Baruch Ivcher (sobre a restrição à liberdade de imprensa), e vários outros casos por violações a garantias do devido processo.
10. DULITZKY, Ariel. La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales locales: un estudio comparado. In: La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales locales. Buenos Aires Editores del Puerto, 1997. p. 51.
11. À guisa de exemplos alentadores poder-se-ia mencionar a Corte Constitucional de Colômbia, a Sala IV da Corte Suprema de Justiça de Costa Rica e a Corte Suprema de Justiça da Nação, na Argentina.
12. Diante desse tipo de atentados contra os direitos humanos, o Poder Judiciário atua proporcionando um primeiro nível de proteção (interna), e só em sua falha é que entrarão em funcionamento os mecanismos internacionais de proteção, constituindo-se em subsidiária a atuação dessas entidades: na medida que servem de “auxílio e colaboração ao direito interno, […e dão…] uma nova cobertura à tutela dos direitos e uma nova instância perante a qual fazê-los valer quando internamente um Estado os desconhece e os viola”. (HERRENDORF, Daniel, CAMPOS, Germán Bidart. Principios de derechos humanos y garantías. Buenos Aires: Ediar, 1991. p. 262).
13. DULITZKY, Ariel, op. cit., p. 52.
14. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 25.