Sistema
Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos
Legislação e Jurisprudência
SUMÁRIO BIBLIOTECA VIRTUAL INÍCIO
2 JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
2.2.2 Sentenças
2.2.2.4 CASO EL AMPARO – REPARAÇÕES
(ART. 63.1 DA CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS)
SENTENÇA DE 14 DE SETEMBRO DE 1996
VOTO DISSIDENTE DO JUIZ A. A. CANÇADO TRINDADE
No caso El Amparo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, de acordo com os artigos 45 e 46 do Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante “o Regulamento”), em relação ao artigo 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante “a Convenção” ou “a Convenção Americana”) e em cumprimento da sentença de 18 de janeiro de 1995, profere a seguinte sentença sobre as reparações no presente caso apresentado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante “a Comissão” ou “a Comissão Interamericana”) contra a República da Venezuela (doravante “Venezuela”, “o Estado” ou “o Governo”).
I
1. O presente caso foi submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante “a Corte” ou “a Corte Interamericana”), pela Comissão Interamericana, mediante a Petição de 14 de janeiro de 1994, com a qual acompanhou o Relatório n. 29/93, de 12 de outubro de 1993. Originou-se em uma Denúncia (n. 10.602) contra a Venezuela, recebida na Secretaria da Comissão, em 10 de agosto de 1990.
2. Na referida demanda, a Comissão afirmou que a Venezuela violou os artigos 2º (Dever de Adotar as Disposições de Direito Interno), 4º (Direito à Vida), 5º (Direito à Integridade Pessoal), 8º(1) (Garantias Judi-ciais), 24 (Igualdade perante a Lei), 25 (Proteção Judicial) e 1º(1) (Obrigação de Respeitar os Direitos) da Convenção Americana, pela morte de José R. Araujo, Luis A. Berrío, Moisés A. Blanco, Julio P. Ceballos, Antonio Eregua, Rafael M. Moreno, José Indalecio Guerrero, Arín O. Maldonado, Justo Mercado, Pedro Mosquera, José Puerta, Marino Torrealba, José Torrealba e Marino Rivas, ocorrida no Canal “La Colorada”, Distrito Páez, Estado Apure, Venezuela.
Desse modo, no referido documento, alegou a violação dos artigos 5º, 8º(1), 24 e 25 da Convenção, em prejuízo de Wolmer Gregorio Pinilla e José Augusto Arias, únicos sobreviventes dos atos antes mencionados.
3. Este caso, continua a petição, refere-se a fatos que ocorreram a partir de 29 de outubro de 1988. Nesse dia, dezesseis pescadores do povo de “El Amparo”, Venezuela, dirigiam-se para o Canal “La Colorada”, através do Rio Arauca, localizado no Estado Apure, para participar de um “passeio de pesca”. Aproximadamente às 11:20 horas da manhã, quando alguns pescadores desciam da embarcação, membros militares e policiais do “Comando Específico José Antonio Páez” (CEJAP) abriram fogo contra eles, matando quatorze dos dezesseis pescadores.
4. Em 1º de agosto de 1994, o Estado remeteu a sua contestação da demanda e, por meio da nota de 11 de janeiro de 1995, reafirmou que a Venezuela “não se opunha aos fatos referidos na demanda e que aceitava a responsabilidade internacional do Estado”.
5. Em 18 de janeiro de 1995, a Corte proferiu sentença na qual dispôs:
1. Registra o reconhecimento de responsabilidade feito pela República da Venezuela e decide que cessou a controvérsia acerca dos fatos que originaram o presente caso.
2. Decide que a República da Venezuela é obrigada a reparar os danos e pagar uma justa indenização às vítimas sobreviventes e aos familiares dos falecidos.
3. Decide que as reparações, forma e quantia da indenização serão fixadas pela República da Venezuela e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de comum acordo, dentro de um prazo de seis meses, contados a partir da notificação desta sentença.
4. Reserva-se a faculdade de revisar e aprovar o acordo e, no caso de não chegar ao mesmo, a Corte determinará a abrangência das reparações e o montante das indenizações e custas, para o que deixa aberto o procedimento (Caso El Amparo, Sentença de 18 de janeiro de 1995, Série C, n. 19, Parte Resolutiva).
II
6. A Corte é competente, de acordo com o artigo 62 da Convenção, para decidir sobre o pagamento de reparações, indenizações e custas no presente caso, em razão de que, em 9 de agosto de 1977, a Venezuela ratificou a Convenção e, em 24 de junho de 1981, aceitou a competência contenciosa da Corte.
III
7. O prazo estipulado no item 3 da sentença da Corte venceu em 18 de julho de 1995, sem esta ter recebido notícias de que houvesse ocorrido um acordo. Portanto, e de conformidade com a referida sentença, cabe à Corte determinar a abrangência das reparações e o montante das indenizações e custas.
8. Mediante a Resolução de 21 de setembro de 1995, a Corte decidiu iniciar o procedimento de reparações, indenizações e custas e outorgou o prazo à Comissão até 3 de novembro de 1995, para que oferecesse e apresentasse as provas de que dispusesse acerca das reparações, indenizações e custas neste caso, data em que se recebeu a informação correspondente. Além disso, a Corte outorgou ao Estado o prazo até 2 de janeiro de 1996, para que apresentasse as suas observações sobre o documento da Comissão, as quais foram recebidas nessa data.
9. Em 27 de janeiro de 1996, a Corte celebrou uma audiência pública na sua sede, para conhecer os pontos de vista das partes sobre as reparações, indenizações e custas.
10. Na audiência pública sobre as reparações, o Governo entregou a seguinte prova documental: duas folhas relativas aos indicadores de desenvolvimento humano no Estado de Apure; um folheto denominado “Estimativas de Pobreza em 30.6.94” e um folheto denominado “Alguns indicadores sociais por entidade federal, período 1990-1994”. Durante a referida audiência, a Comissão entregou duas certidões judiciais relativas aos poderes concedidos pelos familiares das vítimas; um documento que continha a exposição do representante do Governo da Venezuela perante a Comissão; vários documentos incluindo recortes de jornais e vários referentes a reuniões dos advogados do caso com os familiares e sobreviventes; um livro denominado “Comandos do Crime: o massacre de El Amparo” e um documento dirigido ao Secretário da Corte sobre os diversos atos do procedimento.
11. Mediante comunicação de 29 de abril de 1996, a Secretaria, seguindo instruções do Presidente da Corte, solicitou à Comissão o esclarecimento de sua posição relativa a vários aspectos sobre o lucro cessante e dano emergente no caso. A Comissão esclareceu a sua posição, ao acolher os documentos dos representantes das vítimas de 13 e 29 de maio de 1996. Em vista de que essas notas apresentavam discrepâncias com as apresentadas anteriormente pela Comissão e os representantes das vítimas, reiterou esclarecimento à Comissão, a qual respondeu mediante nota de 13 de setembro de 1996, que fazia sua as observações do documento dos representantes das vítimas, de 4 de setembro de 1996, “sendo portanto o critério da Corte que decide em última instância o que melhor couber”.
IV
12. Com o fim de determinar o montante das indenizações de forma adequada e amparada aos respectivos aspectos técnicos, considerou-se pertinente utilizar os serviços profissionais de um perito processual. Para os referidos efeitos, designou-se o Licenciado Eduardo Zumbado J., contador assessor de San José, Costa Rica, cujos pareceres foram recebidos na Secretaria da Corte, nos dias 5 e 9 de agosto de 1996. O Contador limitou-se, nos seus pareceres, a fazer as operações aritméticas, com base nos dados contidos nas alegações escritas das partes e nas provas constantes no expediente.
V
13. A Venezuela reconheceu a sua responsabilidade neste caso, o que significa que se têm por certos os fatos expostos na demanda de 14 de janeiro de 1994, sendo este o sentido da sentença proferida pela Corte em 18 de janeiro de 1995. Não obstante, existem diferenças entre as partes quanto à abrangência das reparações e o montante das indenizações e custas, e a controvérsia sobre esta matéria será decidida pela Corte na presente sentença.
14. Em matéria de reparações, é aplicável o artigo 63.1 da Convenção Americana que prescreve o seguinte:
1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegido nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao lesado o gozo do seu direito ou liberdade violada. Disporá também, se procedente, que sejam reparadas as conseqüências da medida ou situação que configurou a violação desses direitos e o pagamento de uma justa indenização à parte lesada.
O disposto neste artigo corresponde a um dos princípios fundamentais do direito internacional, conforme reconhecido pela jurisprudência (Factory at Chorzów, Jurisdiction, Judgemet n. 8, 1927, PCIJ, Series A, n. 9, p. 21 e Factory at Chorzów Merits, Judgment n. 13, 1928, PCIJ, Series A, n. 17, p. 29; Reparation for Injuries Suffered in the Service of the United Nations, Advisory Opinion, ICJ Reports 1949, p. 184). Assim aplicado pela Corte (Caso Velásquez Rodríguez, Indenização Compensatória (art. 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), sentença de 21 de julho de 1989, Série C, n. 7, parágrafo 25; Caso Godínez Cruz, Indenização Compensatória, (art. 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Sentença de 21 de julho de 1989, Série C, n. 8, parágrafo 23; Caso Aloeboetoe e outros, Reparações (art. 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Sentença de 10 de setembro de 1993, Série C, n. 15, parágrafo 43).
15. Pelo exposto, a obrigação de reparação é regida pelo direito internacional em todos os aspectos, como por exemplo abrangência, modalidade, beneficiários, entre outros, que não podem ser modificados, nem suspensos pelo Estado obrigado, invocando, para isso, as disposições do seu direito interno (Caso Aloeboetoe e outros, Reparações, supra 14, parágrafo 44).
16. Por não ser possível a restitutio in integrum, no caso de violação do direito à vida, é necessário procurar formas substitutivas de reparação a favor dos familiares e dependentes das vítimas, como a indenização pecuniária. Esta indenização refere-se primeiramente aos prejuízos sofridos e, como esta Corte expressou anteriormente, estes compreendem tanto o dano material, como o moral (cf. Caso Aloeboetoe e outros, Reparações, supra 14, parágrafos 47 e 49).
VI
17. Quanto ao dano material, nos seus documentos de 3 de novembro de 1995 e 29 de maio de 1996, e na audiência pública de 27 de janeiro de 1996 sobre reparações, a Comissão referiu-se ao “dano emergente” e considerou que este incluía as despesas efetuadas pelos familiares das vítimas para obter informações acerca das mesmas e as realizadas para procurar os seus cadáveres e efetuar as tramitações perante as autoridades venezuelanas.
18. O montante total solicitado pela Comissão é de “US$ 240.000 para as 14 famílias e 2 sobreviventes, a ser dividido em partes iguais”. No seu documento de 3 de novembro de 1995, e durante a audiência pública, a Comissão destacou que os representantes das vítimas haviam expressado que “o Estado da Venezuela reconheceu como certa esta soma e renuncia expressamente à possibilidade de exigir comprovantes”, mas não apresentaram prova da referida afirmação. Pelo contrário, na audiência pública celebrada perante esta Corte, o Estado qualificou a soma reclamada como “astronômica” e “desproporcional”.
19. No seu documento de 29 de maio de 1996, a Comissão sustentou que “as condições de vida das vítimas e seus familiares, impediram que fossem conservados os respectivos comprovantes. Isso motiva a necessidade de um cálculo estimativo dos mesmos”.
20. O Estado, em documento de 2 de janeiro de 1996, fez uma análise das quantidades solicitadas pela Comissão e manifestou que não foram apresentadas as “provas específicas sobre as despesas verdadeiramente efetuadas para obter informações acerca das vítimas” e que o montante era evidentemente “desproporcional” e não se adequava à realidade.
21. Mesmo não havendo apresentado nenhuma prova sobre o montante das despesas, a Corte considera eqüitativo conceder a cada uma das famílias das vítimas falecidas, e a cada um dos sobreviventes, uma indenização de US$ 2.000,00, como compensação pelas despesas incorridas nas suas diversas tramitações no país.
VII
22. Para chegar a um montante adequado sobre o restante dos danos materiais sofridos pelas vítimas, a Comissão levou em conta o salário mínimo rural para a data em que ocorreram os fatos (outubro de 1988), incorporando os reajustes por aumento geral de salários durante o período, assim como a indexação correspondente à inflação. A expectativa de vida utilizada é de 69 anos. A Comissão chegou a uma cifra de aproximadamente US$ 5.500,00 para cada vítima e US$ 2.800,00 para os sobreviventes.
23. O Estado, por sua vez, expressou no documento de 2 de janeiro de 1996 que não existia sustentação probatória em relação a cada um dos que são propostos como beneficiários (sucessores), salvo para as vítimas, nem muito menos em relação ao montante solicitado para cada um deles”. Acrescentou que os montantes solicitados não guardavam “relação, nem proporção com as condições dos afetados e seus familiares, nem com as condições da zona geográfica em que habitam, nem com as condições gerais – econômicas e sociais – da República da Venezuela.
24. Durante a audiência pública de 27 de janeiro de 1996, o Delegado da Comissão expressou que “o que estamos reclamando, US$ 5.000 aproximadamente, para cada uma das vítimas ou familiares das vítimas, estimamos que é uma soma razoável, pelo tempo passado”. Na mesma au-diência, um representante das vítimas expressou que as cifras consignadas pela Comissão eram muito baixas, porque se fez uma estimativa conservadora quanto à capacidade de receitas das vítimas e, além disso, houve um erro de cálculo, devido ao que pediu-se que fosse realizado um estudo contábil.
25. Em 29 de abril de 1996, o Presidente solicitou à Comissão esclarecimento de alguns dados sobre a matéria, os quais foram fornecidos pelos documentos de 13 e 29 de maio de 1996. A Comissão, ainda, no primeiro dos referidos documentos, destacou que houve “um erro mate-rial dos cálculos de lucro cessante das vítimas” e modificou a quantia solicitada para um montante que varia entre US$ 67.000,00 e US$ 197.000,00 para cada uma das vítimas e aproximadamente
US$ 5.000,00 para cada um dos dois sobreviventes. A Comissão também manifestou que o salário básico rural correspondente ao mês de outubro de 1988 “totaliza 1.700 Bolívares. Deste modo, cabe consignar que, na mesma data, de câmbio era de 37.14 Bs/US$”.
26. Mediante comunicado de 14 de junho de 1996, o Governo apresentou suas observações sobre as citadas comunicações da Comissão de 13 e 29 de maio, e expressou que não se trata de um simples erro material, senão de um novo cálculo que aumenta em mais de 1.000% os cálculos estabelecidos na oportunidade processual correspondente, pelos próprios advogados das vítimas e avalizados pelos Delegados da Comissão “e que o Governo de boa-fé” avaliou o montante solicitado formalmente pelo lucro cessante na audiência celebrada em 27 de janeiro passado. Fez notar que somente vários meses depois modificam-se radicalmente os cálculos (...) e propõem-se agora cifras astronômicas.
27. Posteriormente, os representantes das vítimas e de seus familiares forneceram para esta Corte informação quanto à idade das mesmas, a expectativa de vida e o salário básico rural. Deste modo, estimaram em 20% o total das receitas de cada pessoa como despesas individuais.
28. Com base na informação recebida e os cálculos efetuados pelo contador designado ad effectum, a Corte calculou que a indenização que cabe outorgar a cada uma das vítimas ou suas famílias baseia-se na idade que tinham as mesmas, no momento da morte e os anos que faltavam para atingir a idade de expectativa de vida normal na Venezuela, na qual foi calculada a cifra, ou pelo tempo que permaneceram sem trabalhar, no caso dos sobreviventes. A Corte baseou seus cálculos tomando como salário-base um montante não menor que o custo da cesta básica, por ser uma quantia superior ao salário básico rural, no momento dos fatos. Uma vez efetuado o referido cálculo, aplicou-se uma dedução de 25%, por despesas pessoais, como já feito em outros casos. A esse montante foram somados os juros correntes, desde a data dos fatos, até o presente.
29. Com base nessa fórmula, a Corte considera que cada uma das famílias das vítimas falecidas deve receber como indenização os montantes a seguir:
Julio Pastor Ceballos $ 23.953,79, Moisés A. Blanco $ 28.303,94, José I. Guerrero $ 23.139,44, Marino E. Vivas $ 26.838,00, José G. Torrealba $ 28.535,66, José Ramón Puerta $ 27.416,52, Arín Ovadía Maldonado $ 23.558,79, Rigo J. Araujo $ 26.145,70, Pedro I. Mosquera $ 27.235,10, Luis A. Berrío $ 25.006,34, Rafael Magín Moreno $ 23.139,44, Carlos A. Eregua $ 28.641,52 e Justo Mercado $ 26.145,70.
30. Quanto aos dois sobreviventes, Wolmer Gregorio Pinilla e José Augusto Arias, a Corte concordou conceder uma indenização de
US$ 4.566,41 para cada um deles, como compensação por não ter podido trabalhar durante dois anos.
VIII
31. Quanto ao dano moral, no seu documento de 3 de novembro de 1995, a Comissão citou, para defini-lo, o parágrafo 87 da Sentença de Reparações no Caso Aloeboetoe e outros, e os parágrafos 40 e seguintes da Sentença de Indenização Compensatória no Caso Velásquez Rodríguez e expressou que, para este caso, “a soma estimada pelo dano moral é de US$ 125.000 por família – fundada nas sentenças de Velásquez e Godínez – a serem distribuídas eqüitativamente entre as famílias, em atenção ao número de membros. Quanto aos sobreviventes, realizou-se um cálculo pela metade (US$ 62.500,00). A soma total é de US$ 1.875.000”. Na audiência pública, o delegado expressou que não devia ligar-se o dano moral aos danos materiais. Manifestou que o dano moral “de uma vítima não pode estar em relação direta com a posição social ou situação econômica da vítima”.
32. No seu documento de 2 de janeiro de 1996, o Estado, por sua parte, citou esta Corte e a Corte Européia de Direitos Humanos e alegou que “o reconhecimento de uma violação por parte do próprio Tribunal é normalmente uma reparação eqüitativa por todos os danos causados” e com maior razão no presente caso, já que o próprio Estado reconheceu a sua responsabilidade unilateralmente. Quanto ao montante solicitado pela Comissão para indenizar os danos morais, o Estado considerou “excessivo e totalmente desproporcionado com os danos materiais e com as condições gerais do presente processo e de suas vítimas”.
33. A Corte observa que, ainda que a Comissão tenha-se apoiado, para calcular o dano moral, nas estimativas feitas por esta Corte nos casos Velásquez Rodríguez e Godínez Cruz, nas sentenças de 21 de julho de 1989 e também na sentença de Reparações, do caso Aloeboetoe e outros, os montantes foram diversos (US$ 29.070,00 para cada uma das seis famílias e US$ 38.155,00 para a sétima, aos quais foram acrescentadas outras obrigações a serem feitas por parte do Estado).
34. A Corte considera que a jurisprudência, mesmo quando servir de orientação para estabelecer princípios nesta matéria, não pode ser invocada como um critério único a ser seguido, mas sim que se deve analisar cada caso particular. Ao anterior, caberia acrescentar que, no presente julgamento, à semelhança do caso Aloeboetoe e outros e diferente dos casos Velásquez Rodríguez e Godínez Cruz, o Estado reconheceu os fatos e assumiu a sua responsabilidade.
35. Por outro lado, são muitos os casos em que outros tribunais internacionais decidiram que a sentença de condenação per se constitui uma suficiente indenização do dano moral, conforme consta, por exemplo, da jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos (arrêt Kruslin du 24 avril 1990, Série A, Nº 176-A, p. 24, par. 39; arrêt McCallum du 30 août 1990, Série A, n. 183, p. 27, par. 37; arrêt Wassink du 27 septembre 1990, Série A, n. 185-A, p. 15, par. 41; arrêt Koendjbiharie du 25 octobre 1990, Série A, n. 185-B, p. 42, par. 35; arrêt Darby du 23 octobre 1990, Série A, n. 187, p. 14, par. 40; arrêt Lala c. Pays-Bas du 22 septembre 1994, Série A, n. 297-A, p. 15, par. 38; arrêt Pelladoah c. Pays-Bas du 22 septembre 1994, Série A, n. 297-B, p. 36, par. 44; arrêt Kroon et autres c. Pays-Bas du 27 octobre 1994, Série A, n. 297-C, p. 59, par. 45; arrêt Boner c. Royaume-Uni du 28 octobre 1994, Série A, n. 300-B, p. 76, par. 46; arrêt Ruiz Torija c. Espagne du 9 décembre 1994, Série A, n. 303-A, p. 13, par. 33; arrêt B. contre Autriche du 28 mars 1990, Série A, n. 175, p. 20, par. 59). Contudo, esta Corte considera que, mesmo quando uma sentença condenatória possa constituir uma forma de reparação e satisfação moral, tenha ou não ocorrido o reconhecimento da responsabilidade por parte do Estado, no presente caso esta não seria suficiente, dada a específica gravidade da violação do direito à vida e ao sofrimento moral causado às vítimas e suas famílias, as quais devem ser indenizadas, conforme a eqüidade.
36. Conforme já estabelecido por esta Corte, “o dano moral infringido às vítimas (...) resulta evidente, pois é próprio da natureza humana que toda pessoa submetida às agressões e vexames mencionados experimente um sofrimento moral. A Corte entende que não se requerem provas para chegar a esta conclusão.” (Caso Aloeboetoe e outros, Reparações, supra 14, parágrafo 52).
37. De acordo com o exposto, levando em consideração todas as circunstâncias peculiares do caso, a Corte chegou à conclusão que é justo conceder a cada uma das famílias dos falecidos e a cada um dos sobreviventes, uma indenização de US$ 20.000,00.
IX
38. A Corte expressou em casos anteriores que a indenização que deve ser paga por alguém ter sido arbitrariamente privado da sua vida é um direito que cabe àqueles que são diretamente prejudicados por esse fato.
39. A petição da Corte à Comissão, apoiada em informação fornecida por diversos representantes das vítimas, apresentaram diversas listas com os nomes das pessoas que, segundo alega, são os filhos, pais e cônjuges das vítimas. Por essa razão, não foi possível à Corte elaborar uma lista exata dos sucessores das vítimas no momento da morte destes, devido à existência de contradições e imprecisões na informação dada, devendo a Corte comparar as diversas listas recebidas da Comissão e dos diversos representantes das vítimas, para determinar a lista descrita infra, no parágrafo 42.
40. Conforme manifestado anteriormente pela Corte, são comuns na maioria das legislações, que os sucessores de uma pessoa sejam seus filhos. Também geralmente aceita-se que o cônjuge participe no patrimônio adquirido durante o casamento e algumas legislações outorgam-lhe, ainda, um direito sucessório junto com os filhos (Caso Aloeboetoe e outros, Reparações, supra 14, parágrafo 62). Contudo, a Corte registra que uma das vítimas, Julio Pastor Ceballos, tinha esposa e uma companheira e filhos com ambas.
Neste caso, a Corte considera justo dividir a indenização entre as duas.
X
41. A Corte passa a examinar o concernente à distribuição dos montantes decididos com relação aos diferentes aspectos, e considera eqüitativo adotar os seguintes critérios, que estão de acordo com o resolvido em ocasiões anteriores (Caso Aloeboetoe e outros, Reparações, supra 14, parágrafo 97).
a. A reparação do dano material será dividida da seguinte forma: um terço para a esposa e dois terços para os filhos, entre os quais será dividida a quota em partes iguais.
b. A reparação do dano moral será dividida, metade aos filhos, um quarto para a esposa e um quarto para os pais.
c. Se não houver esposa, mas companheira, a parte referente à esposa será recebida pela companheira.
d. Quanto ao dano material, se não houver nem esposa, nem companheira, esta parte será dada aos pais. Quanto ao dano moral, se não houver nem esposa, nem companheira, a quota dos filhos será acrescida desta parte.
e. No caso de falta de pais, a sua porção será recebida pelos filhos das vítimas e, se somente um dos pais estiver vivo, este receberá o total do montante correspondente.
f. A indenização por reembolso de despesas será entregue à esposa ou companheira.
g. As duas vítimas sobreviventes receberão a totalidade das indenizações correspondentes.
42. A Corte, levando em consideração a informação do expediente, elaborou a seguinte lista de beneficiários com direito a indenização:
(...)
XI
43. Quanto à forma de dar cumprimento à presente sentença, o Estado deverá pagar, dentro do prazo de seis meses a partir da sua notificação, as indenizações combinadas a favor dos familiares maiores de idade e das vítimas sobreviventes e, se algum tiver falecido antes do pagamento, aos seus herdeiros.
44. Nos documentos da Comissão e na audiência pública de 27 de janeiro de 1996, esta sempre calculou a indenização em dólares norte-americanos. Na sua comunicação de 14 de junho de 1996, o Governo reiterou que os cálculos “devem ser estabelecidos em bolívares, que é a moe-da nacional da República da Venezuela, onde moram os sucessores”.
45. Em relação ao anterior, a Corte declara que o Estado pode cumprir esta obrigação mediante o pagamento em dólares norte-americanos ou em uma soma equivalente em moeda nacional venezuelana. Para determinar esta equivalência, será utilizado o câmbio do dólar norte-americano e da moeda venezuelana, na praça de Nova Iorque, do dia anterior ao do pagamento.
46. No referente à indenização a favor dos menores de idade, o Governo constituirá fideicomissos em uma instituição bancária da Venezuela, solvente e segura, dentro do prazo de seis meses, nas condições mais favoráveis permitidas pela legislação e a prática bancária, em benefício de cada um desses menores, os quais receberão mensalmente, os respectivos juros. Ao completar a maioridade ou contrair casamento, receberão o total que lhes corresponde. Em caso de falecimento, o direito será transferido aos herdeiros.
47. Na hipótese de que algum dos maiores de idade não se apresente para receber o pagamento da parte da indenização que lhe corresponde, o Estado depositará a soma devida em um fideicomisso, nas condições indicadas no parágrafo anterior e fará todo o possível para localizar essa pessoa. Se, após dez anos de constituído o fideicomisso, a pessoa ou seus herdeiros não houverem reclamado, a soma será devolvida ao Estado e será considerada cumprida esta sentença. O anterior será aplicável também aos fideicomissos constituídos a favor dos familiares menores de idade.
48. O pagamento das indenizações será isento de todo imposto atualmente existente ou que possa ser decretado no futuro.
49. No caso em que o Governo incorrer em mora, deverá pagar o juro sobre o total do capital devido, que corresponderá ao juro bancário vigente na Venezuela na data do pagamento.
XII
50. Dentro das reparações não-pecuniárias e custas, no seu documento de 3 de novembro de 1995, a Comissão solicitou que o Estado da Venezuela convocasse uma conferência de imprensa e a posterior publicação nos jornais nacionais do reconhecimento, perante a opinião pública, de que os fatos acontecidos em 29 de outubro de 1988, em “El Amparo”, foram de responsabilidade do Estado, assim como “a declaração de que nunca mais serão tolerados fatos como os do caso e a criação de uma fundação, cujo objetivo será a promoção e difusão do direito internacional dos direitos humanos na região onde ocorreram os fatos”; mas não fez suas as petições dos representantes das vítimas quanto “à publicação da sentença nos principais jornais internacionais”.
51. No seu documento de 3 de janeiro de 1996, o Estado expressou que as reparações não-pecuniárias solicitadas pela Comissão não estavam de acordo “nem com a jurisprudência internacional em geral, nem com a jurisprudência da Corte Interamericana, em particular”. O Estado considerou que a satisfação solicitada pela Comissão para as vítimas e seus familiares estava compreendida na pretensão relativa aos danos morais e alegou que “a honra e a fama das vítimas e de seus familiares ficaram plenamente restabelecidos pelo conhecimento da responsabilidade – anterior e posterior – da República da Venezuela pelos fatos ocorridos”.
52. No seu documento mencionado de 3 de novembro de 1995, a Comissão solicitou a reforma do Código de Justiça Militar,
especificamente o artigo 54.2 e 54.3, assim como dos regulamentos e instruções castrenses, tanto e quanto sejam incompatíveis com a Convenção. O referido artigo dispõe na sua parte condizente que: “são atribuições do Presidente da República, como funcionário da Justiça Militar: (...) 2. Ordenar que não seja aberto julgamento militar em casos determinados, quando assim estimar conveniente para os interesses da Nação. 3. Ordenar a suspensão dos julgamentos militares, quando assim julgar conveniente, em qualquer estado da causa”.
53. No mesmo documento, a Comissão solicitou a investigação e “sanção efetiva aos autores materiais e intelectuais, cúmplices e encobridores dos fatos que originaram o presente caso”.
54. No seu documento de 3 de janeiro de 1996, também citado anteriormente, o Estado alegou que a petição da Comissão não tinha relação com os fatos, nem com a responsabilidade do Estado por estimar que a restituição supõe o restabelecimento da situação ao estado anterior aos fatos que deram ensejo à responsabilidade. Expressou que “nada do solicitado pela Comissão neste propósito, pode representar uma restituição no sentido assinalado. O Código de Justiça Militar, não é, por si próprio, incompatível com a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos”.
55. Quanto à investigação e sanção efetiva dos autores dos fatos, o Estado manifestou que é evidente que a Sentença da Corte Interamericana não pode ir além das indenizações que cabem, sem afetar, ao mesmo tempo, os direitos de supostos implicados. A indenização às vítimas e aos seus familiares, o reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado da Venezuela e a própria Sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos são o meio idôneo para reparar – até onde seja possível – os danos causados às vítimas e aos seus familiares.
56. Em resumo, a Comissão concretiza as reparações não-pecuniárias na reforma do Código de Justiça Militar e dos regulamentos e instruções castrenses que sejam incompatíveis com a Convenção; a investigação e efetiva sanção aos autores materiais e intelectuais, cúmplices e encobridores dos fatos que originaram o presente caso; a satisfação às vítimas, mediante a restituição da sua honra e reputação e o estabelecimento inequívoco dos fatos; a satisfação à comunidade internacional, mediante a declaração de que não são tolerados fatos como os ocorridos no caso; e a criação de uma fundação para a promoção e a difusão do Direito Internacional dos Direitos Humanos na região onde ocorreram os fatos.
57. Por sua parte, o Estado alega que os artigos impugnados do Código de Justiça Militar não foram aplicados no presente caso, o que constitui atribuição do Presidente da República; que a satisfação às vítimas é consumada pelo reconhecimento da responsabilidade pela Venezuela e que as reparações não-patrimoniais não estão de acordo com a jurisprudência internacional em geral, nem com a desta Corte, em particular.
58. Em relação ao anterior, a Corte considera que, efetivamente, o artigo 54 do citado Código, que concede ao Presidente da República a faculdade de ordenar que não seja aberto julgamento militar em casos determinados, quando estimar conveniente aos interesses da Nação e ordenar a suspensão dos julgamentos militares em qualquer estado da causa, não foi aplicado no presente caso. As autoridades militares iniciaram e continuaram um processo contra os responsáveis pelo caso “El Amparo” e o Presidente da República nunca ordenou que não fosse continuado o processo, nem que fosse suspenso.
59. Na Opinião Consultiva OC n. 14/94, esta Corte dispôs:
A jurisdição contenciosa da Corte é exercida com a finalidade de proteger os direitos e liberdades de pessoas determinadas e não com a de resolver casos abstratos. Não existe na Convenção nenhuma disposição que permita à Corte decidir, no exercício da sua competência contenciosa, se uma lei que não afetou nem mesmo os direitos e liberdades protegidos de indivíduos determinados é contrária à Convenção. Como antes dito, a Comissão poderia fazê-lo e, dessa forma, daria cumprimento à sua função principal de promover a observância e defesa dos direitos humanos. A Corte também poderia fazê-lo no exercício da sua função consultiva, em aplicação do artigo 64.2 da Convenção (Responsabilidade Internacional por expedição e aplicação das leis de violações da Convenção (arts. 1º e 2º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Opinião Consultiva OC n. 14/94, de 9 de dezembro de 1994, Série A, n. 14, parágrafo 49).
60. A Corte, de acordo com o expressado na Opinião Consultiva citada, abstém-se de se pronunciar em abstrato sobre a compatibilidade do Código de Justiça Militar da Venezuela e seus regulamentos e instruções com a Convenção Americana e, portanto, não cabe ordenar ao Estado da Venezuela a reforma solicitada pela Comissão.
61. Quanto à continuação do processo para a investigação dos fatos e a sanção das pessoas responsáveis, essa é uma obrigação que cabe ao Estado, sempre que tenha ocorrido uma violação dos direitos humanos, e essa obrigação deve ser seriamente cumprida, e não como uma mera formalidade.
62. Quanto às outras reparações não-pecuniárias que solicitou a Comissão, a Corte estima que o reconhecimento de responsabilidade feita pela Venezuela, a sentença sobre o mérito deste caso, de 18 de janeiro de 1995 (cf. Caso El Amparo, supra 5) e a presente sentença proferida por esta mesma Corte, constituem per se reparação adequada.
XIII
63. Em relação à condenação em custas solicitada pela Comissão, a Corte declarou em ocasiões anteriores que aquela não pode exigir a reintegração das despesas exigidas pela sua modalidade interna de trabalho, através da imposição de custas (Caso Aloeboetoe e outros, Reparações, supra 14, parágrafos 110 a 115).
XIV
64. Portanto, a Corte,
por unanimidade,
1. Fixa em US$ 722.332,20 o total das indenizações devidas aos familiares das vítimas e as vítimas sobreviventes referidas neste caso. Este pagamento deverá ser feito pelo Estado da Venezuela, no prazo de seis meses a contar da data da notificação da presente sentença, e na forma e condições expressadas nos parágrafos precedentes.
por unanimidade,
2. Ordena o estabelecimento de fideicomissos, conforme o previsto nos parágrafos 46 e 47 desta Sentença.
por unanimidade,
3. Decide que o Estado da Venezuela não poderá onerar com imposto algum o pagamento das indenizações.
por unanimidade,
4. Decide que o Estado da Venezuela é obrigado a continuar as investigações dos fatos referentes neste caso e punir os responsáveis.
por quatro votos contra um,
5. Declara que não procedem as reparações não-pecuniárias, nem pronunciamento algum sobre a conformidade do Código de Justiça Militar e os regulamentos e instruções castrenses com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Dissidente o Juiz Cançado Trindade
por unanimidade,
6. Resolve que supervisionará o cumprimento desta sentença e somente depois dará por concluído o caso.
por unanimidade,
7. Declara que não há condenação em custas.
O Juiz Cançado Trindade fez conhecer à Corte o seu Voto Dissidente, o qual anexará nesta sentença.
San José, Costa Rica, em 14 de setembro de 1996
Héctor Fix-Zamudio – Presidente, Hernán Salgado Pesantes, Alejandro Montiel Argüello, Alirio Abreu Burelli, Antonio A. Cançado Trindade e Manuel E. Ventura Robles – Secretário.
VOTO DISSIDENTE DO JUIZ A. A. CANÇADO TRINDADE
1. Lamento não poder acompanhar a maioria da Corte quanto ao critério adotado por esta, nos parágrafos 60 e 62 e a decisão tomada por esta no ponto resolutivo n. 5 da presente Sentença sobre as reparações. No meu Voto Razoado na Sentença anterior (de 18 de janeiro de 1995), no mesmo caso El Amparo, sustentei que a Corte deveria naquela etapa do processo (reconhecimento de responsabilidade efetuado pela República de Venezuela), ter expressamente reservado a faculdade de examinar e decidir sobre a solicitação original da Comissão Interamericana de Direitos Humanos acerca da incompatibilidade ou não da vigência do artigo 54 (2) e (3) do Código de Justiça Militar da Venezuela com o objetivo e finalidade da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. Como, na presente Sentença, a Corte decidiu abster-se de se pronunciar sobre a matéria, vejo-me na obrigação de apresentar meu Voto Dissidente.
2. A sinalização pela Corte de que o disposto no artigo 54 (2) e (3) do Código de Justiça Militar(1) “não foi aplicado no presente caso” (parágrafo 58), não a priva da sua competência para proceder à determinação da incompatibilidade ou não daquelas disposições legais(2) com a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. No meu entendimento, a própria existência de uma disposição legal pode per se criar uma situação que afeta diretamente os direitos protegidos pela Convenção Americana. Uma lei pode, certamente, violar estes direitos em razão da sua própria existência e, na ausência de uma medida de aplicação ou execução, pela ameaça real à(s) pessoa(s), representada pela situação criada pela referida lei.
3. Não me parece necessário esperar a ocorrência de um dano (material ou moral) para que uma lei possa ser impugnada; pode ser, sem que isto represente um exame ou determinação in abstrato da sua incompatibilidade com a Convenção. Se fosse necessário aguardar a aplicação efetiva de uma lei ocasionando um dano, não haveria como sustentar o dever de prevenção. Uma lei pode, pela sua própria existência e na ausência de medidas de execução, afetar os direitos protegidos, na medida em que, por exemplo, pela sua vigência priva as vítimas ou seus familiares de um recurso efetivo perante os juízes ou tribunais nacionais competentes, independentes ou imparciais, assim como das garantias judiciais plenas (nos termos dos arts. 25 e 8º da Convenção Americana).
4. Ao abster-se de se pronunciar sobre a matéria, a Corte deixou de proceder, como lhe cabia, ao exame ou determinação da incompatibilidade da vigência do artigo 54(2) e (3) do Código de Justiça Militar da Venezuela, com os deveres gerais consagrados na Convenção Americana, de garantir os direitos reconhecidos na mesma (art. 1º) e de adotar disposições de direito interno (medidas legislativas ou de outro caráter), que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos (art. 2º). Considero a Corte plenamente habilitada para se pronunciar sobre este ponto específico, mesmo perante a invocada não-aplicação das referidas disposições do Código de Justiça Militar no cas d’espèce.
5. Foi necessário esperar muitos anos para admitir-se a possibilidade de estabelecer a questão da incompatibilidade de medidas legislativas e práticas administrativas com as obrigações convencionais internacionais em matéria de direitos humanos, no contexto de casos concretos(3). A jurisprudência internacional, no presente domínio, nos planos tanto regional, como global, evoluiu a ponto de admitir, hoje, que um indivíduo pode, sob determinadas condições, reivindicar ser vítima de uma violação de direitos humanos perpetrada pela simples existência de medidas permitidas pela legislação, sem que tenham sido aplicadas a ele(4). Efetivamente, pode fazê-lo perante o simples risco de ser diretamente afetado por uma lei(5), perante a ameaça contínua representada por manter em vigor a legislação impugnada(6). Atualmente, reconhece-se que um indivíduo pode efetivamente impugnar uma lei que ainda não foi aplicada em seu prejuízo, bastando para isso que a referida lei seja aplicável, de forma tal que o risco ou ameaça que o mesmo venha a sofrer os seus efeitos seja real, seja algo mais que uma simples possibilidade teórica(7).
6. Um entendimento contrário minaria o dever de prevenção consagrado na jurisprudência desta Corte. Precisou-se a ampla abrangência de tal dever, o qual abrange todas as medidas legislativas e administrativas e outras que promovam a salvaguarda dos direitos humanos e que assegurem que as violações sejam efetivamente tratadas como fatos ilícitos acarretando sanções aos seus responsáveis(8). A reparação, como conceito genérico, abrange também estes elementos, além das indenizações devidas às vítimas. A reparação plena, que no presente contexto configura-se como a reação do regulamento jurídico de proteção aos fatos de violação dos direitos garantidos, tem uma ampla abrangência. Inclui, quanto à restitutio in integrum (restabelecimento da situação anterior da vítima, sempre que possível) e às indenizações (de acordo com o princípio geral do neminem laedere), a reabilitação, satisfação e – significativamente – a garantia de não-repetição dos fatos de violações (o dever de prevenção).
7. A partir do momento em que são constatadas violações dos direitos humanos protegidos, o exame da incompatibilidade de disposições legais do direito interno com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos deixa de ser, a meu modo de ver, uma questão abstrata. Uma lei pode per se configurar incompatível com a Convenção, na medida em que, por exemplo, iniba o exercício dos direitos protegidos, mesmo na ausência de uma medida de aplicação. Uma lei pode per se revelar incompatível com a Convenção, na medida em que, por exemplo, não imponha limites precisos ao poder discricionário atribuído às autoridades públicas de interferir no exercício dos direitos protegidos(9). Uma lei pode per se mostrar incompatível com a Convenção, na medida em que, por exemplo, dificulte as investigações em andamento ou ocasione obstruções no processo judicial ou tolere a impunidade dos responsáveis pelas violações dos direitos humanos.
8. O questionamento da compatibilidade com a Convenção da vigência de uma lei que per se cria uma situação legal que afeta os direitos humanos protegidos é uma questão concreta. No meu entendimento, é a existência de vítimas(10), que fornece o critério decisivo para distinguir o exame simplesmente in abstrato, de uma disposição legal, da determinação da incompatibilidade da referida disposição com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no âmbito de um caso concreto, como o “El Amparo”. A existência de vítimas torna juridicamente inconseqüente a distinção entre a lei e a sua aplicação, no contexto do caso concreto.
9. Na presente Sentença sobre reparações, a decisão da Corte de abster-se de se pronunciar sobre a incompatibilidade da vigência do artigo 54(2) e (3) do Código de Justiça Militar da Venezuela(11) com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Ponto Resolutivo n. 5), procura fundamentar-se (parágrafos 59-60) em um obiter dictum da sua Opinião Consultiva (sobre a Responsabilidade Internacional por Expedição e Aplicação de Leis de Violações da Convenção, OC n.14/94), de 9 de dezembro de 1994, conforme a qual, “não existe na Convenção nenhuma disposição que permita à Corte decidir, no exercício da sua competência contenciosa, se uma lei que não afetou nem mesmo os direitos e liberdades protegidos de indivíduos determinados, é contrária à Convenção”(12). A Corte deixa de responder à questão prévia se uma lei, pela sua própria existência, afeta ou pode afetar, os direitos protegidos pela Convenção.
10. Um órgão de proteção internacional dos direitos humanos não deve, a meu ver, partir da premissa de que uma lei, pela sua própria existência, “não afetou nem mesmo” os direitos protegidos, devendo portanto aguardar medidas de execução que acarretem a ocorrência de um dano. Não deve fazê-lo, mesmo ainda, quando toda a evolução do regulamento jurídico de proteção(13) é hoje claramente direcionada e inclinada em outro sentido. A decisão da Corte sobre este ponto específico, baseada no referido obiter dictum da sua Opinião Consultiva OC n. 14/94, colide, a meu ver, com a letra e espírito do artigo 62(1) e (3) da Convenção Americana, em virtude do qual a competência contenciosa da Corte estende-se a todos os casos relativos à interpretação e aplicação das disposições da Convenção. Estas últimas, incluem os deveres dos Estados-partes de garantir os direitos reconhecidos e de adequar seu direito interno à normativa da Convenção, para tornar efetivos tais direitos.
11. Por conseguinte, a determinação da incompatibilidade de uma lei interna com a Convenção não é prerrogativa exclusiva do exercício da competência consultiva da Corte. A diferença consiste em que, no exercício da competência consultiva (art. 64(2) da Convenção), a Corte pode emitir opiniões sobre a incompatibilidade ou não de uma lei interna (e inclusive, de um projeto de lei)(14), com a Convenção in abstrato, enquanto que, no exercício da competência contenciosa, a Corte pode determinar, a solicitação de uma parte, a incompatibilidade ou não de uma lei interna com a Convenção, nas circunstâncias do caso concreto. A Convenção Americana, efetivamente autoriza a Corte, no exercício da sua competência contenciosa, a determinar se uma lei, impugnada pela parte demandante e que pela sua própria existência afeta os direitos protegidos, é ou não contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Corte tem a competência ratione materiae, e devia ter procedido a esta determinação e à fixação das suas conseqüências jurídicas.
Antônio A. Cançado Trindade – Juiz e Manuel E. Ventura Robles – Secretário._______________
(1) O artigo 54 do Código de Justiça Militar outorga ao Presidente da República, como “funcionário de justiça militar”, as atribuições de ordenar que, “não se instaure julgamento militar nos casos determinados, quando assim estimar conveniente” aos interesses nacionais (inciso 2) e de ordenar “a suspensão dos julgamentos militares, quando assim julgar conveniente, em qualquer estado da causa” (inciso 3).
(2) E os regulamentos e instruções castrenses.
(3) A exemplo do ocorrido, v.g., nos casos Kjeldsen (1972) e Donnelly (1973), perante a Comissão Européia de Direitos Humanos.
(4) Corte Européia de Direitos Humanos, caso Klass e Outros, Sentença de 6.9.1978, parágrafo 34.
(5) Corte Européia de Direitos Humanos, caso Marckx, Sentença de 13.6.1979, parágrafo 27; Corte Européia de Direitos Humanos, caso Johnston e Outros, Sentença de 18.12.1986, parágrafo 42.
(6) Corte Européia de Direitos Humanos, caso Dudgeon, Sentença de 22.10.1981, parágrafos 41 e 63. No caso De Jong, Baljet e van den Brink, a Corte Européia referiu-se à sua jurisprudence constante (well-established case-law), conforme a qual, a existência de uma violação da Convenção era “concebível, mesmo na ausência de prejuízo”; Sentença de 22.5.1984, parágrafo 41.
(7) Comitê de Direitos Humanos (sob o Acordo de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas), caso Aumeeruddy-Cziffra e Outras, Observações de 9.4.1981, parágrafo 9.2. Independentemente das conclusões quanto à determinação dos fatos em um caso, não há como negar que uma lei interna pode, pela sua própria existência, constituir uma violação direta dos direitos protegidos; Comitê de Direitos Humanos, caso dos Impedidos e Incapazes Italianos, Observações de 10.4.1984, parágrafo 6.2.
(8) Tal como assinalado pela Corte Interamericana nos casos Velásquez Rodríguez, Sentença de 29.7.1988, parágrafo 175; e Godínez Cruz, Sentença de 20.1.1989, parágrafo 185.
(9) Corte Européia de Direitos Humanos, caso Malone, Sentença de 2.8.1984, parágrafos 67-68. Uma lei que atribui tal poder discricionário deve indicar expressamente a abrangência e os limites precisos de tal poder; Corte Européia de Direitos Humanos, caso Silver e Outros, Sentença de 25.3.1983, parágrafos 86-88.
(1o) No presente domínio de proteção, as vítimas de violações de direitos humanos ocupam uma posição central; e como claramente revela o contencioso de reparações e indenizações, são elas, as vítimas – e não a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – a verdadeira parte demandante perante a Corte. É o que consta inequivocamente desta Sentença e da audiência pública, de 27 de janeiro de 1996, perante a Corte, no presente caso.
(11) E os regulamentos e instruções castrenses.
(12) Parágrafo 49 da Opinião Consultiva OC n. 14/94.
(13) À qual corresponde à evolução da noção de vítima no direito internacional dos direitos humanos; cf. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, 1987, v. 202, p. 243-299.
(14) Como admite a Corte Interamericana, na sua Opinião Consultiva (sobre a Proposta de Modificação à Constituição Política de Costa Rica Relacionada com a Naturalização, OC n. 4/84), de 19 de janeiro de 1984 (parágrafos 22-29).